60 anos do golpe de 1964: Rubens Paiva e a importância da memória como ferramenta democrática

Nestes 60 anos do golpe militar que derrubou a democracia e colocou o país sob tutela do exército entre 1964 e 1985, o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) lembra um dos grandes brasileiros que foi sequestrado e morto nos porões do regime ditatorial. O engenheiro Rubens Paiva, único parlamentar com o status de desaparecido durante a ditadura, defensor ardoroso da democracia e da soberania nacional, foi assassinado pelo Estado em 1971, aos 41 anos, deixando família e amigos que, por muitos anos, foram obrigados a viver um doloroso processo, inicialmente na esperança de encontrá-lo vivo e, mais tarde, de recuperar seu corpo.

Em 2014, em comemoração ao Dia do Engenheiro, o Senge RJ inaugurou dois bustos em memória de Rubens: um deles está na estação da Linha 2 do Metrô que leva seu nome, na Pavuna. O outro, ainda mais simbólico, ocupa o centro da Praça Lamartine Babo, na Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, em frente ao 1º Batalhão da Polícia do Exército, onde funcionou o DOI-CODI no Rio de Janeiro, local de tortura e assassinato de militantes pela democracia. A morte de Rubens havia sido reconhecida pelo Estado um ano antes, em 2013, após conclusão de investigações da Comissão da Verdade que apontaram o batalhão na Tijuca como o local do assassinato de Rubens.

Da esquerda para a direita, Darby Igayara (CUT), Luiz Cosenza e Olímpio Alves dos Santos, presidente do SENGE-RJ. Foto: Claudionor Santana

Na ocasião, o presidente do Senge RJ, Olímpio Alves dos Santos, explicou a importância e o objetivo da homenagem: jamais esquecer para jamais repetir. “Não é uma provocação. É apenas o resgate da memória, para que ela fique sempre presente naqueles que fizeram isso, e naqueles que não sabem o que foi a ditadura militar (…) Esperamos apenas que as Forças Armadas tenham a coragem de limpar essa mancha na sua história, para que não haja conivência e repetição”, discursou Olímpio na inauguração, que contava também com uma exposição sobre a vida e desaparecimento de Paiva.

Em recente entrevista ao Instituto Conhecimento Liberta (ICL), a filha de Rubens, Vera Paiva, lembrou a vida e o legado do pai e prestou um emocionado depoimento sobre o sofrimento da família nos anos que seguiram ao sequestro de seu pai. 

“Durante muito tempo pessoas nos ligavam e davam pistas falsas, alimentavam nossas esperanças. A coisa mais dura para filhos, parentes e amigos de desaparecidos é não ter um corpo para enterrar, aceitar e viver o luto. Eu só aceitei a morte do meu pai dez anos depois. Decidir aceitar a morte e viver o luto nos faz sentir quase como coautores da morte. Já conversei com muitos parentes de desaparecidos e essa é uma experiência compartilhada por nós. É duro, mas é assim que nos sentimos. É uma dupla tortura”, conta Vera.

Apagamento sob Bolsonaro

Membro da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos desde 2014, quando foi nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, Vera só não foi demitida por Bolsonaro porque a lei exigia que o colegiado tivesse sete membros. Mas, a apenas 15 dias da posse do presidente Lula, no apagar das luzes de seu governo fascista, com o órgão fortemente aparelhado pela extrema-direita desde 2019, Bolsonaro aprovou a sua extinção. 

A decisão veio depois de sessão extraordinária da comissão, convocada pelo presidente da comissão, o então assessor da ministra Damares Alves, Marco Vinicius Pereira de Carvalho, abertamente defensor do regime militar. Votaram contra a extinção, além de Vera Paiva, Diva Soares Santana, irmã de Dinaelza Santana, militante do PCdoB morta pelos militares e Ivan Marx, representante do Ministério Público Federal. Os votos que garantiram a maioria pela extinção da comissão foram do presidente Marco Vinicius Pereira de Carvalho, Jorge Luiz Mendes de Assis, militar, Felipe Barros, deputado federal (PL-PR) e Paulo Fernando Melo Costa, ligado ao senador Magno Malta (PL-ES). 

Bolsonaro exibe cartaz na porta de seu gabinete de deputado federal contra a busca dos restos mortais dos militantes assassinados pela Ditadura Militar. Foto: Dida Sampaio/Agência Estado

“Um dos últimos atos do governo Bolsonaro foi fingir que a investigação havia terminado. Como a lei determina que a comissão não poderia ser extinta sem um relatório, aguentamos a barbaridade que foi o encerramento corrido do processo apenas para apresentar algum relatório e permitir a dissolução da comissão”, conta Vera.

A luta pela manutenção da comissão durante um governo fascista foi dura e a oposição de Bolsonaro era pública e notória. “Estamos falando de um homem que tinha colado na porta de seu gabinete de deputado federal um cartaz de um cão com um osso na boca e a frase ‘Quem procura osso é cachorro’. Como todo bom torturador, é um covarde sem empatia que só enfrenta quem está rendido. Ele é, notoriamente, um defensor da tortura e da eliminação de inimigos políticos”, destaca Vera.

Havia previsão para a reinstalação da comissão em outubro de 2023. Sob cobrança do Ministério Público Federal, que exige o cumprimento da lei que regula os trabalhos da comissão, considerado incompleto, os planos não foram em frente.

Não lembrar é um equívoco

“Lula não é uma pessoa covarde. Acho que a decisão de ignorar os 60 anos do golpe militar e cancelar os projetos relacionados à memória dos mortos da ditadura é um equívoco gigantesco, um erro político baseado em uma má interpretação da conjuntura. Para não melindrar e ganhar os militares, Lula erra. Se não fizermos o vínculo do golpe de 1964 com a tentativa de golpe de 2023, não educaremos as novas gerações, inclusive os militares na caserna, que ainda chamam o golpe de revolução. Eles, sem dúvida, farão eventos comemorativos”, aponta Vera. 

A crítica de Vera foi direcionada às declarações do presidente ao “É notícia”, da Rede TV!. Lula disse que o golpe de 1964 “faz parte do passado” e que é preciso “parar de remoer e tocar o país para frente”. Para evitar atrito com os militares, o presidente também proibiu manifestações dos ministros, atos oficiais que vinham sendo planejados para marcar a data e a construção do Museu da Memória e dos Direitos Humanos, dedicado ao período ditatorial. A criação do museu havia sido anunciada pelo então ministro da Justiça Flávio Dino, em Santiago, no Chile.

Manter a memória viva. Arte: Halô D’Angelo/Brasil de Fato.

“Nós devemos ao Brasil e vamos pagar essa dívida com a criação, no Brasil, de um Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O ministro Silvio Almeida, que está aqui com Nilmário Miranda, assessor de Memória do ministério dos Direitos Humanos, entra com os talentos e capacidade e o ministério da Justiça entrará com o capital para levar essa ideia adiante”, discursou Dino em evento que lembrava os 50 anos do golpe de 1973 no Chile.    

Em entrevista ao Poder 360, a presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e professora da Faculdade de Direito da UnB, Enéa de Stutz, reforçou a posição de Vera: “O presidente falou sobre o Holocausto recentemente. Ué, o Holocausto faz mais tempo que o golpe militar no Brasil. Mas aí falar no golpe é remoer o passado, mas do Holocausto não? É incoerente. Crime contra a humanidade é crime contra a humanidade. Não tem isso de ser pouco tempo ou muito tempo. Não podemos entrar no modo negacionista: pessoas morrem, seja na saúde ou na proteção da democracia”, declarou.

Uma década após a entrega do Relatório Final da Comissão da Verdade, o Estado só cumpriu duas das 29 recomendações propostas, segundo levantamento do Instituto Vladimir Herzog publicado no último ano: a revogação da Lei de Segurança Nacional e a criação de um órgão permanente para articular pela efetivação das recomendações do relatório. O ministro Silvio Almeida, dos Direitos humanos e Cidadania, anunciou a criação do grupo em audiência na Câmara dos Deputados em abril de 2023, mas os atos oficiais e nomeações não vieram.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
com informações do Brasil de Fato e ICL Notícias
Foto em destaque: Fisenge/Reprodução 

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