Crise hídrica acende debate sobre governança

Cidades do Rio chegam a ficar mais de 36 horas sem água; situação não é recente

Por Camila Marins (Fisenge)

“Estamos em racionamento de água há três meses. A cidade está dividida em dois setores. A parte central do município está no setor dois, ficamos 12 horas com água e 36 horas sem água. A parte alta da cidade chega a ficar mais tempo sem água, incluindo os banheiros públicos da praça Barão de Araras”. Este é o relato da dona de casa Teresa Goés, moradora da cidade de Araras, interior de São Paulo. Já a situação na Baixada Fluminense, do Rio de Janeiro, mostra que este cenário não é novidade para os moradores do bairro Parque Colonial, em Belford Roxo. “Já chegamos a passar 20 dias sem água. Às vezes, o meu marido e o meu filho não dormem à noite, esperando que alguma água chegue para ligar a bomba e encher a caixa d’água”, contou Maria dos Anjos, aposentada de 73 anos. Enquanto isso, a região Nordeste registrou, em 2013, sua pior seca em 50 anos. Depoimentos de diferentes regiões do país apontam que a crise hídrica não é pauta recente no Brasil. No entanto, a falta de água por razões climáticas e a falta de gestão hídrica alertaram a sociedade recentemente.

A falta de chuvas na região Sudeste afetou, especialmente, os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Tanto o Sistema Cantareira (SP) como o rio Paraíba do Sul (RJ) chegaram ao volume morto [reserva técnica]. Desde o ano passado, a cidade de São Paulo sofre com a possibilidade de escassez de água e, mesmo com esse cenário, o governador Geraldo Alckmin, por possíveis interesses da campanha eleitoral, retardou em assumir a crise e iniciar o contingenciamento. E ainda propôs, por meio de anúncio da Agência Nacional de Água (ANA), a interligação do Cantareira com o Paraíba do Sul. O governo de São Paulo sinalizou posição favorável, ao contrário do governo do Rio de Janeiro. De acordo com o presidente do Sindicato dos Engenheiros de Volta Redonda (Senge-VR), João Thomaz, no Rio de Janeiro, o rio Paraíba do Sul é a única opção. “O Plano Estadual de Recursos Hídricos já prevê a impossibilidade de mais uma transposição. O Estado do Rio de Janeiro não pode aceitar uma segunda transposição, porque não há um projeto com contrapartidas sociais, ambientais e econômicas a curto, médio e longo prazo. Uma transposição ou interligação comprometem a soberania hídrica do Estado”, afirmou João Thomaz, que é especialista em gestão ambiental e integrante da Comissão Ambiental Sul.

De acordo com o secretário estadual de meio ambiente do governo do Rio de Janeiro, André Corrêa, o Estado sofre a mais severa estiagem dos últimos 84 anos. Em abril de 2014 foram tomadas as primeiras medidas de contingência para enfrentar a crise hídrica, resultando numa economia de 540 milhões de m³. “Com o agravamento da crise,  medidas adicionais de contingência estão sendo tomadas: novas adaptações da captação da Estação de Tratamento de Água (ETA) Guandu e de vários municípios ao longo do rio Paraíba do Sul, e mudança dos pontos de captação de água dos usuários industriais na foz do rio Guandu, no Canal de São Francisco”, pontuou o secretário, que afirmou que um gabinete de emergência foi criado para incentivar as quatro principais indústrias do Distrito de Santa Cruz a utilizarem  água de reuso.

A respeito da transposição do rio Paraíba do Sul, o secretário esclarece que o Governo do Estado do Rio de Janeiro sempre se posicionou da mesma forma. ” segurança hídrica dos usos atuais e futuros que dependem das águas da Bacia Paraíba do Sul, no Estado fluminense, não pode ser comprometida. E é assim que as negociações tem sido pautadas. O abastecimento humano é prioridade em todo o Estado”, complementou.

Dados divulgados pelo Ministério das Cidades mostram que o consumo de água das populações das maiores e mais ricas cidades do país ficou acima da média brasileira em 2013. Naquele ano, a média foi de 166,3 litros diários por pessoa, o que extrapolou de longe os 110 litros per capita por dia recomendados pela Organização das Nações Unidas (ONU), com base em padrões europeus de consumo

Modelo de gestão

A atual conjuntura tem apresentado uma série de dicotomias. Uma delas é o modelo de gestão das empresas, que priorizam acionistas, em vez da sociedade. As Companhias Estaduais de Saneamento começaram a ser implantadas no final da década de 60, a partir do Plano Nacional de Saneamento (Planasa), e, durante a década de 70, passaram a abranger a totalidade dos estados brasileiros e também no Distrito Federal. Segundo o engenheiro civil e presidente da Fisenge, Clovis Nascimento, mesmo com a implantação das Companhias Estaduais e um crescimento substancial nos níveis de cobertura de água e de esgoto no país, ainda há problemas estruturais de gestão a serem enfrentados. “Um grande problema das empresas estaduais de saneamento é a gestão. Lembro que tinha empresa no Nordeste que só funcionava na parte da tarde. Outra, na mesma região, teve, em um ano, três presidentes. Uma dessas empresas não existe mais. Há que se ter um choque de gestão nas empresas, com compromisso político em favor da sociedade”, ratificou.

Dessa forma, é preciso aprofundar o debate sobre a crise hídrica em outras questões, como o combate à atual concepção de água como mercadoria, e não como direito. “Água é vida e dever do Estado brasileiro. Hoje, 6% de 200 milhões de habitantes estão sem água potável, o que corresponde a quatro países do tamanho do Uruguai. Todos os cidadãos e as cidadãs desse país têm que ter acesso à água potável. Ainda convivemos com um número muito complicado na área de mortalidade infantil por doenças de veiculação hídrica”, ressaltou Nascimento, lembrando que as áreas mais pobres e periféricas são as que mais sofrem com a falta de acesso à água potável e esgotamento sanitário. Estudo do Instituto Trata Brasil (2013) aponta que, das 100 maiores cidades do país, apenas doze estariam cumprindo o plano de saneamento básico.

Possíveis soluções

Desde o anúncio da crise hídrica no país, soluções são as questões mais debatidas e cobradas pela sociedade. A engenharia tem o papel fundamental de formular e implementar políticas públicas de reuso da água, saneamento e manejo de resíduos. Em um país praticamente desértico como Israel, por exemplo, cerca de 80% da água é reaproveitada com registro de 10% de perdas nas tubulações. Outros métodos usados pelo país são a dessalinização da água do mar e o reuso de esgoto, que tornaram o país um dos líderes mundiais de tratamento de água de esgoto com um avançado processo de dessalinização.

No Brasil, empresas como a Petrobras já fazem o reuso da água em diversas linhas de produção. “Principalmente no ‘refino de óleo’, a empresa reutiliza a água depois de ter passado por um processo de uso. A engenharia brasileira e os seus engenheiros têm capacidade de desenvolver e aplicar técnicas de reuso da água. A USP tem bons projetos, assim como outras instituições de ensino e pesquisa. Precisamos definir como prioridade e promover soluções no gerenciamento dos recursos hídricos”, explicou o engenheiro Gilson Neri, diretor da Fisenge.

Já as soluções imediatas exigem um plano de emergência, segundo o coordenador da Frente Nacional de Saneamento Ambiental (FNSA), Edson Aparecido da Silva. “Em São Paulo, para a superação dessa crise é necessário que o Governo do Estado decrete imediatamente Estado de Calamidade Pública e a priorização do uso da água para consumo humano e de animais. Também defendemos a distribuição de caixas de água para todos os imóveis de população de baixa renda e também a criação de incentivos fiscais para equipamentos hidráulicos que economizam água”, destacou Silva, que também integra o Coletivo de Luta pela Água recém-criado em São Paulo.

Clovis Nascimento indica a importância de um pacto entre sociedade civil, governos e setor privado. “A participação e o diálogo do conjunto da sociedade com o Estado são fundamentais para ações coletivas. Isso significa o fortalecimento dos espaços institucionais de articulação dos recursos hídricos pela população”, disse Clovis. Nesse sentido, Gilson Neri reafirma a importância da ocupação dos espaços de decisão coletiva. “A gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades nos Comitês de Bacias Hidrográficas. Vamos exercer esse direito”, concluiu.

Nordeste: a convivência com a seca

Esse cenário alerta para uma questão histórica da falta de gestão hídrica no país, que existe há décadas, especialmente na região Nordeste. “A maioria dos estados dessa região vive, todos os anos, a angústia do déficit hídrico, ou seja, a demanda de água é sempre maior que aquela ofertada pelos órgãos gestores. O Nordeste já vive em crise endêmica de água”, pontuou Gilson Neri, que também é integrante do Conselho Estadual de Recursos Hídricos do Estado de Sergipe e Comitês de Bacias.

De acordo com o agrônomo e assessor técnico da Cáritas, Alessandro Nunesa seca no Nordeste acontece não apenas em períodos de estiagem, como também em inverno regular. “Tivemos o primeiro registro de seca em 1583, no Nordeste. E por que não resolvemos esse problema? Identificamos questões históricas como a falta de gestão, infraestrutura e vontade política”, contextualizou Alessandro, que defende a convivência com o semiárido e o desenvolvimento de tecnologias. Isso significa, dentre outras medidas, captação e estoque de água de chuvas; práticas de conservação do solo; e descentralização do acúmulo de água. “Mesmo com adversidades, as famílias têm conseguido produzir para garantir a segurança alimentar de seus lares e até vender em feiras agroecológicas locais. A convivência com o semiárido influencia a permanência das famílias no campo e promove uma agricultura menos agressiva”, observou Alessandro.

O diretor da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Evanildo Barbosa, destaca que enquanto São Paulo e Rio de Janeiro estão sofrendo hoje com a falta d’água, a cidade do Recife está há quase três décadas convivendo com a intermitência. “Este fato faz com que a capital pernambucana, por exemplo, seja uma grande produtora de poços artificiais de coleta e abastecimento água, em grande parte para substituir nos edifícios privados os serviços públicos de água e esgoto. Além disso, caixas-d’água se amontoam entre telhados e lajes nas áreas de morros, revelando que, para ter acesso, a população tem que vigiar para estocar água”, analisou.

Impactos na agricultura

A ONU aponta que cerca de 70% de toda a água disponível no mundo – que já não é muita – é utilizada para irrigação. No Sul do país, em Santa Catarina, por exemplo, a estrutura de produção agrícola é baseada na agricultura familiar, pequenas propriedades com uso de tecnologia, em que a irrigação não tem esse volume de participação no consumo da água. “Precisamos investir mais e apoiar a agricultura familiar, para que possamos ampliar sistemas de irrigação eficientes para garantir sua produção em anos de seca. Portanto, não temos uma crise hídrica na agricultura, mas sim problemas com estiagensjá que a maioria dos agricultores ainda não utiliza sistema de irrigação”, explicou o engenheiro agrônomo e diretor de comunição do Sindicato dos Engenheiros Agrônomos de Santa Catarina (Seagro-SC), Jorge Dotti Cesa.

Uma questão importante colocada por Dotti é a construção da visão de que o meio rural e a agricultura são os responsáveis por todos os problemas ambientais. “A atual crise de água e energia no Brasil é de responsabilidade dos governantes e da concentração urbana. Em outros estados, grandes áreas agrícolas de latifúndio podem estar causando problemas com o excessivo uso de água, mas não a agricultura familiar”, detalhou.

Saneamento e universalização

O Brasil passou muitos anos sem ter um arcabouço legal que pudesse dar um norte e definir as macrodiretrizes para o saneamento brasileiro. A partir de 2007, com a promulgação da Lei 11.445, que foi resultado de uma luta intensa do setor de saneamento, iniciou-se um trabalho de formulação do Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), sancionado pela presidenta Dilma. Este dispositivo estabelece prazos para que estados e municípios apresentem o seu plano municipal e estadual de saneamento, bem como a ampliação de investimentos públicos no setor. De acordo com o Plansab, o Brasil precisaria atingir a universalização em 20 anos.

O país possui cerca de 27 empresas estaduais de saneamento e cerca de 1.500 empresas municipais públicas que prestam um serviço de qualidade, e algumas empresas privadas. Recentemente, alguns governos, como o Rio de Janeiro, anunciaram a possibilidade de Parcerias Público-Privadas (PPPs) para o setor do saneamento. “Só se pode chegar a universalizar se o Estado não abrir mão da condução dessa política, da prestação dos serviços e, principalmente, da disposição de fazer justiça por meio das políticas públicas. O problema é que temos sinais de que há uma incompatibilidade entre universalização pretendida por um viés público de prestação de serviços e outro viés, aquele ancorado no mercado”, alertou Evanildo Barbosa, da Fase.

Clovis Nascimento elucidou que as PPPs são privatizações travestidas em parcerias. “Estas parcerias têm retornado à agenda com um vigor muito grande e não podemos permitir que o saneamento brasileiro seja privatizado, como objeto de lucro. A água está diretamente ligada à vida dos seres humanos, que necessita, para sua existência, da energia retirada do alimento, do oxigênio que nós respiramos e da água. Se faltar um dos três o ser humano morre. Então, não dá para admitir que a água seja objeto de mercado”, afirmou.

A letra da música “Sobradinho” ilustra bem todo esse processo:“O homem chega, já desfaz a natureza. Tira gente, põe represa, diz que tudo vai mudar. O São Francisco lá pra cima da Bahia diz que dia menos dia vai subir bem devagar. E passo a passo vai cumprindo a profecia do beato que dizia que o Sertão ia alagar. O sertão vai virar mar, dá no coração o medo que, algum dia, o mar também vire sertão”.

 

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