Fonte: Jornal da Energia
Valor Econômico – 17/09/2012* Roberto Pereira d´Araujo, consultor, é engenheiro eletricista e ex-membro do conselho de administração de Furnas
O jornal Brasil Econômico de 28/6 publicou a reportagem “Mercado Livre, economia com energia vai a 1,5 bi em 2 anos”. O artigo, que louva as vantagens do sistema, tomado ao pé da letra, é uma oportunidade para uma reflexão sobre o setor como um todo e, principalmente para a desconfortável situação tarifária do Brasil, um dos poucos países que contam com expressiva participação de hidroeletricidade. Abaixo, alguns trechos que suscitam as considerações feitas aqui.
“Novo modelo permite redução de até 20% nos gastos, apenas com alteração contratual, mas ainda é pouco conhecido por companhias que demandam menos de 3MWhs ou R$ 500 mil por mês.” “O mercado livre de energia permite às empresas comprar seu suprimento de outros fornecedores, além dos agentes convencionais num mercado específico, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). Os contratos lá negociados se referem a períodos de alguns meses. Essas operações podem ser comparadas às vendas de commodities,…..” “A adesão ao ACL não significa que os consumidores precisam instalar novas fiações. A energia chega às portas da companhia da mesma maneira que no regime tradicional, pelas mesmas distribuidoras. (…) Para o consumidor, o fornecimento permanece igual, vindo pelos mesmos “encanamentos”.” Primeiro é preciso informar que o mercado livre brasileiro não tem semelhança com mercados de energia de outros países. Pelas características singulares do nosso sistema, o que se negocia aqui não é a energia física, mas sim um “certificado”. O que o setor chama de “garantia física” ou “energia assegurada” é um número que não aparece em nenhuma especificação de turbina ou gerador, pois é o resultado de uma fórmula matemática. As usinas brasileiras não vendem a energia que geram, mas sim uma fração do total produzido pelo sistema interligado calculada matemática e estatisticamente. Assim, quando um consumidor muda seu fornecimento da distribuidora para um comercializador, nenhuma nova usina é ligada ou aumenta sua geração em função dessa mudança. Como a reportagem assinalou, a gestão física do sistema é feita pelo Operador Nacional do Sistema (ONS), que gerencia o sistema independente de contratos comerciais. Essa constância física é distinta dos outros mercados, onde a disputa é por kWhs gerados. Em mercados genuínos, quem tem energia mais cara perde geração e renda. Portanto, como enfatizado pela reportagem, o mundo físico não se altera. As correntes que chegam àquela fábrica permanecem exatamente as mesmas. Ora, se tudo permanece imutável, como um consumidor, da noite para o dia, passa a pagar menos? Se as gerações são comandadas pelo ONS, como uma mesma configuração de fluxos energéticos passaria a ter custos menores? Seriam os preços anteriores que estariam muito altos apesar de definidos em leilões competitivos? Será que a energia contratada por prazos menores é mais barata? Não deveria ser o contrário? Ou será que a economia de 20% citada no artigo surge de uma anomalia do nosso mercado? A anomalia está no modelo que “mimetiza” um mercado genuíno de energia. Se os fluxos de energia permanecem os mesmos, a conta do consumidor que diminui é um mero arranjo financeiro, geralmente influenciado pelo nosso preço de curto prazo. Fruto da singularidade brasileira, esse preço, o PLD (Preço de Liquidação de Diferenças), nada mais é do que o CMO (custo marginal de operação), um parâmetro da operação usado pelo ONS para gerir a reserva do sistema interligado. Ele não deixa de ser também uma variável aleatória, já que depende da hidrologia tropical dos nossos rios. Por isso, quem está no mercado livre acaba por adotar a estratégia que envolve períodos de “alguns meses”. Por incrível que pareça, uma lógica da operação passa a influenciar a gestão de contratos . Quando o sistema está equilibrado, na maioria do tempo, o PLD é muito baixo. Já chegou a valer R$ 4/MWh, enquanto fora do spot, pagava-se R$ 120/MWh. Se sua média é R$ 120/MWh, o valor mais provável gira no entorno de R$ 40/MWh. O nosso spot é tão estranho que é possível ter preços altos mesmo quando há excesso de oferta, ou o contrário, preços baixos com carência de oferta. A sua extrema volatilidade pode ser, ora uma grande vantagem e ora um grande prejuízo, o que é uma péssima característica para um mercado. O mercado mais antigo do mundo é o NORDPOOL, que existe entre Suécia, Noruega, Dinamarca e Finlândia. (Curva verde no gráfico abaixo) Lá, além da menor volatilidade, a diferença entre a tarifa industrial e o spot não passa de uns 20%. Aqui, (curva vermelha) é comum encontrar diferenças de 200%. Portanto, apesar do risco, é até compreensível a adoção de gerenciamentos de curto prazo. Assim, perguntas precisariam ser respondidas: Que vantagens justificaram o número de consumidores nesse mercado passar de apenas 5 para 700 em poucos anos, representando hoje quase 30% da carga? Quais são os preços e prazos praticados? Quem compra de quem? Como garantir a expansão, se parte do consumo se faz através de contratos de poucos meses? Que percentual de contratos de mais longo prazo se fazem através da composição de contratos de curto prazo através de comercializadores? Porque o mercado livre necessita sempre de um percentual do mercado cativo? Porque não viabiliza usinas próprias? Com a saída de consumidores das distribuidoras, como resolver o excesso de contratação das mesmas? Ninguém é favorável à idéia de “castigar” indústrias, ainda mais as que dependem de eletricidade. Entretanto, o que não parece isonômico é que o sistema de preços praticado no mercado livre não seja transparente o suficiente para afastar a possibilidade de captura de vantagens estruturais advindas da nossa singularidade. Muitos países subsidiam a energia elétrica para alguns setores, mas o fazem de forma aberta. Se há um benefício advindo da nossa singularidade, que ele seja repartido de forma igualitária. Um mercado com tal volatilidade oscila entre a especulação e o risco de grandes prejuízos, o que não é saudável nem para quem está no mercado e nem para os cativos, que compartilham o mesmo sistema físico. O hibridismo da modelagem, que é de mercado, mas também espera descontos típicos do sistema de amortização do serviço púbico, pode aumentar ainda mais a não isonomia do sistema. No momento em que o governo se mostra incomodado com o nível tarifário brasileiro, que, desde a implantação do modelo mercantil, só aumenta, é preciso examinar outras estruturas do sistema, além da óbvia carga tributária.
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