A superação do fantasma Bolsonarista

Por Jorge Folena*

W. Benjamim afirmou em seu tempo, diante da imposição do nazismo que se instalava em seu país, que “os mortos se convertem em fantasmas” (no ensaio Drama barroco e tragédia). Recordo hoje suas palavras porque as ideias equivocadas da última ditadura (1964-1985) no Brasil ainda vagam pelas casas, repartições e instituições, como um fantasma a assombrar o país, repetindo os nomes de “cadáveres insepultos” que não aceitam a ideia da própria morte e se recusam a aceitar que seu tempo passou.

Pudemos presenciar a incansável atividade desses espectros durante o governo do ex-presidente, inelegível e agora indiciado criminalmente por práticas delituosas, entre as quais apontamos: tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, ataque às instituições políticas, ao sistema eleitoral e aos opositores políticos; ataques às vacinas e às medidas de segurança na saúde, durante o estado de emergência sanitária da COVID-19; a tudo isto somam-se também acusações por peculato, em razão da apropriação de valores públicos para uso pessoal, o desvio de bens públicos de alto valor (joias) e a falsificação de documento públicos.

É importante recordarmos que o ex-presidente sempre defendeu os valores mais equivocados e perversos do regime autoritário de 1964-1985, como a tortura e os torturadores e jamais teve apreço pela democracia e pela pluralidade de qualquer natureza.

Ao contrário, ele sempre disseminou ódio e crueldade em suas manifestações, mesmo nos momentos mais difíceis vivenciados pelos brasileiros, como durante a pandemia da COVID-19 e na volta da fome a milhões de lares.

Por tudo isto, é oportuno formularmos a seguinte questão: como romper com um passado autoritário, que ainda se manifesta presente, sendo hoje representado pelo ideário bolsonarista, com adeptos nos círculos civis, militares e religiosos?

Apesar da adjetivação “militar”, sabemos que muitos empresários, religiosos, parlamentares, magistrados, promotores de justiça, advogados, professores universitários, jornalistas etc. apoiaram ou facilitaram a implantação da ditadura de 1964-1985.

Vale lembrar que muitos funcionários públicos civis, que foram colaboradores do antigo regime, permaneceram comodamente em funções remuneradas, sem que tenha ocorrido uma purga ou ruptura oficial com o autoritarismo, uma vez que a Constituição de 1988 manteve nos respectivos cargos públicos as pessoas que tinham ingressado na Administração Pública, sem concurso, cinco anos antes da sua promulgação (ou seja, até outubro de 1983, conforme previsto no artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

Em consequência, houve a preservação nas funções públicas de um significativo número de pessoas beneficiadas pelo apadrinhamento político vigente naquele período.

É correto afirmar que o Estado brasileiro se absteve de fazer um saneamento efetivo do seu passado ditatorial, que se transpôs à democracia na figura de agentes do antigo regime que continuaram ativamente em seus cargos públicos, num traço típico do patrimonialismo brasileiro, descrito por Victor Nunes Leal como “filhotismo”, o que levou o ex-governador Leonel Brizola a apelidá-los de “filhotes da ditadura”.

Com efeito, o Brasil passou da ditadura para a democracia sem romper formalmente com o regime antecessor e muitas instituições públicas civis, como os Poderes Legislativo e Judiciário, o Ministério Público e as polícias preservaram em suas listas de servidores agentes notoriamente vinculados ao anterior regime.

Muitos seguiram seus mandatos ou continuaram no pleno exercício das funções institucionais na nova ordem democrática estabelecida a partir de 1985, que se caracterizou como uma transição “tutelada”, “onde homens do ‘antigo regime’ reinavam como condutores da abertura democrática.”

Nesse sentido, recordemos o julgamento realizado pelo STF, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que analisou se a Lei de Anistia (Lei 6.683/1979) teria sido revogada pela Constituição de 1988.

No julgamento, realizado em 29 de abril de 2010, prevaleceu naquela Corte o entendimento de que “a lei de anistia é fruto de um acordo de quem tinha legitimidade social e política para, naquele momento histórico, celebrá-lo”; ou seja, para a maioria dos ministros do Tribunal, a lei foi fruto do “momento da transição conciliada de 1979”.

Consideraram que a lei de anistia não tinha sido revogada pela Constituição de 1988 os ministros Eros Grau, Carmem Lúcia, Ellen Gracie, Gilmar Mendes, Marco Aurélio de Mello e Cezar Peluso. De modo diverso, apenas os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres de Britto entenderam que a referida lei teria sido revogada pela Constituição de 1988.

Na época, o presidente do STF (ministro Cezar Peluso) manifestou que “o Brasil fez uma opção pelo caminho da concórdia” adotando a lei de anistia. Porém, nunca veio a concórdia imaginada por aquela maioria dos ministros do STF, pois muitos “filhotes” do regime de exceção permaneceram conspirando contra as instituições, à espera de uma oportunidade para confrontá-las.

A prova disso é que a manutenção da lei de anistia possibilitou a instalação de um governo autoritário e defensor da última ditadura, cujo chefe do governo atentou por diversas vezes contra a Constituição, a democracia e as instituições políticas brasileiras, entre estas o próprio STF e o TSE, que foram diretamente ameaçados pelo ex-presidente e seus seguidores.

A esse respeito, podemos afirmar que o ex-presidente, quando era deputado federal, com o objetivo de tentar emplacar uma candidatura à presidência da República e visando obter apoio das FFAA e de outros setores reacionários, no trágico julgamento da abertura do indevido impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, proferiu seu voto no Plenário da Câmara dos Deputados mediante o elogio a um torturador contumaz do antigo regime, tentando reviver o cadáver putrefato de um criminoso e o da  sanguinária ditadura à qual ele serviu.

Assim, está claro que fracassou a tentativa de “acordo” mencionada na decisão do STF, e por isso impõe-se a revisão urgente do referido entendimento jurisprudencial, tendo em vista as diversas provas já coletadas na investigação dos acontecimentos  que  culminaram nos graves delitos praticados no 8 de janeiro de 2023, com participação de militares, civis e religiosos, que defenderam abertamente a última ditadura, o Ato Institucional número 05/1968, a “intervenção militar”, o golpe de Estado e o fechamento do Congresso e do STF, cujos integrantes estiveram sob graves ameaças físicas e morais.

Ademais, as investigações policiais das atividades e personagens envolvidos na tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023 constataram a existência de uma agência de espionagem paralela, montada para bisbilhotar e perseguir opositores; essa estrutura continua a vazar informações sigilosas das operações policiais, a divulgar notícias falsas e espalhar ideias odiosas; e essa vigilância paralela representa um desses fantasmas da última ditadura, que precisa ser superado, a fim de que o país possa encontrar seu caminho para a paz e o desenvolvimento.

Por isso, é inaceitável que algumas mídias e formadores de opinião continuem a “passar pano”, em uma tentativa espúria de minimizar as gravíssimas ações do ex-presidente, que precisa ser responsabilizado e severamente punido, para que nunca mais se repitam os atos antidemocráticos defendidos por ele e seus apoiadores.

Não deve ser jamais esquecido que sua irresponsabilidade levou à morte de milhares de brasileiros durante a pandemia da Covid-19, possibilitou a tragédia da volta da fome para milhões de pessoas, o corte de direitos de milhões de trabalhadores, relegados ao abandono da informalidade, e enfraqueceram a soberania do país.

Por tudo o que o ex-presidente defendeu, em sua vida pública, contra a democracia e as instituições nos últimos anos, não é crível que ele tenha a liberdade para realizar atos públicos (como anunciou para o dia 25 de fevereiro), que visam tão somente continuar a jogar brasileiros contra brasileiros, para afrontar o Estado Democrático de Direito e incentivar os princípios equivocados do autoritarismo, pois sua ideologia fascista e de extrema-direita contrapõe-se frontalmente aos princípios da Constituição de 1988.

Vale lembrar que a Constituição de 1988 não tolera o fascismo, que atenta contra a humanidade, que é representado pelas imagens de Bolsonaro apontando arma contra o cidadão, afirmando que o Brasil só terá jeito quando matarem uns trinta mil e sugerindo metralhar opositores políticos, sempre destilando ódio e violência.

Afirma-se, em conclusão, que o espectro do passado ditatorial foi resgatado ao longo do governo Bolsonaro, cuja má influência fortalece o golpismo que segue atentando contra a Constituição e a ordem democrática, mesmo depois de sua derrota nas urnas.

Por tal razão, a fim de exorcizarmos definitivamente esses fantasmas do passado não resolvido, que insistem em retornar para nos assombrar, é preciso que todos os implicados nos acontecimentos que culminaram no golpe do 8 de janeiro de 2023 sejam exemplarmente processados, julgados e condenados.

 

*Jorge Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ. É um dos apresentadores do Soberania em Debate, programa do projeto SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.

Foto: Tania Rêgo/Agência Brasil

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