O Exército Brasileiro confirmou, em uma reunião com o Ministério Público Federal (MPF) no Paraná, que um veículo com símbolo nazista desfilou no 7 de setembro em Curitiba (PR) em 2023. O carro pertence ao presidente de uma entidade civil destinada a preservação de veículos militares antigos e teria sido utilizado ao menos outras cinco vezes nos desfiles do feriado da Independência na capital paranaense.
Até agora, apenas um site de notícias local, O Gazeteiro, havia divulgado a informação. Diante da confirmação de que o veículo participou do desfile, a procuradora da República responsável por investigar o episódio, Hayssa Kirie Medeiros Jardim, decidiu que irá realizar uma reunião com o Museu do Holocausto para avaliar a situação.
Depois, Jardim se reunirá com a Brigada Paranaense de Viaturas Militares Antigas (BPVMA), presidida pelo proprietário do veículo, Laércio Turra. Além disso, a procuradora sugeriu ao Exército a realização de ações educativas junto ao Museu do Holocausto de Curitiba.
O símbolo nazista que estava no veículo que desfilou não era a suástica, o símbolo mais famoso do terceiro Reich, mas uma cruz chamada de Balkenkreuz, principal símbolo utilizado em carros e aviões militares alemães entre 1940 e 1945, segundo o Museu do Holocausto de Curitiba.
O general de brigada Erlon Pacheco da Silva, que comanda a Artilharia Divisionária da 5ª Divisão de Exército, responsável por coordenar o desfile do 7 de setembro, demonstrou, em reunião com o MPF realizada no último dia 23 de fevereiro, não saber que o símbolo era nazista. Ele afirmou que cabe à 5ª Divisão somente a coordenação do desfile, sem atribuição de vetar ou autorizar a participação de veículos da sociedade civil na solenidade.
Além da BPVMA, também participaram do desfile escolas estaduais e municipais. Segundo explicou o general, o desfile é uma solenidade cívico-militar, de forma que o veículo com os símbolos nazistas não desfilou junto às tropas do Exército, mas sim na parte destinada às entidades da sociedade civil.
“Se o veículo foi exibido em um desfile cívico-militar em sete do nove de vinte e três? Positivo, ele desfilou. Se o proprietário foi identificado? O proprietário é o presidente da Brigada Paranaense de Viaturas Militares Antigas”, afirmou o general em reunião gravada com o MPF. Na sequência ele explicou que o desfile é dividido em duas partes, com uma parte civil antes seguida pelos militares.
“Desfile cívico é a primeira parte, que esperam as escolas estaduais, as escolas municipais, onde desfilam as viaturas históricas da Brigada Paranaense de Viaturas Antigas. Nessas viaturas históricas desfilam os pracinhas da FEB (sigla para Força Expedicionária Brasileira, grupamento militar do país que lutou na Segunda Guerra Mundial na Europa).”
‘Talvez se sentissem afrontados’
Além disso, o general afirmou à procuradora na reunião, que foi realizada por videochamada, que conversou com os representantes da Brigada Paranaense e que eles teriam demonstrado não ter conhecimento de que se tratava de um símbolo nazista.
“Quando na Segunda Guerra, quando surgiu a suástica ela foi sobreposta à cruz de ferro nas viaturas de retirada. Depois que terminou a guerra e a cruz de ferro permanece como símbolo do exército (alemão). Então, nas conversas informais também com a brigada (Brigada Paranaense de Viaturas Militares Antigas) em hipótese alguma eles queriam fazer nenhuma apologia, muito pelo contrário”, afirmou o general na reunião, segundo a transcrição do MPF.
“Eles usaram viaturas da época com combatentes da época, tanto que os combatentes, eles estavam usando essas viaturas. Então, também, vamos dizer, talvez se sentissem afrontados. Mas eles estavam ali realmente se sentindo representando a época ali, da guerra, isso foi o que a gente levantou”, seguiu o general relatando as informações que obteve junto à Brigada Paranaense de Viaturas Militares Antigas.
O BPVMA se apresenta na internet como uma entidade sem fins lucrativos destinada a preservar viaturas militares antigas e a homenagear a Força Expedicionária Brasileira, o grupamento militar de brasileiros que lutou na Segunda Guerra na Europa contra as tropas nazistas da Alemanha e as fascistas da Itália. De acordo com o general, a brigada participa dos desfiles de 7 de setembro na capital paranaense desde 2006.
‘Profundo espanto e mal-estar’
Apesar da versão apresentada pelo general Erlon Pacheco da Silva, a procuradora Hayssa Medeiros já havia solicitado um parecer do Museu do Holocausto de Curitiba sobre a imagem do veículo que desfilou no 7 de setembro ano passado.
Em resposta ao MPF, o Museu do Holocausto manifestou espanto com a presença do veículo no desfile e esclareceu que o uso do símbolo no modelo de caminhão militar que desfilou não deixa dúvidas sobre a referência ao nazismo, já que a cruz só foi utilizada nos veículos militares alemães no período do movimento liderado por Hitler.
“Em outras palavras, tanto o veículo quanto a cruz representados de forma isolada não garantem interpretação de simbologia nazista ou de qualquer forma de apologia; porém o uso da cruz estampada num Kübelwagen não deixa dúvidas sobre o seu propósito. A combinação da Balkenkreuz com o Kübelwagen, independentemente de o carro ser original ou réplica, inevitavelmente remete ao período nazista, único no qual o modelo de carro e essa cruz foram usados em conjunto”, diz a manifestação encaminhada ao MPF pelo coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, Carlos Reiss.
O documento foi apresentado ao general na reunião com a procuradora, ao que o militar reagiu: “Não há dúvida que é uma visão bem diferente da que a gente estava tendo aqui”. Como não cabia ao Exército autorizar ou não os veículos do desfile, e como nem todos teriam conhecimento de que a cruz seria um símbolo nazista, a procuradora entendeu ser necessária uma reunião com o Museu do Holocausto e depois com a BPVMA para conscientizá-los sobre as simbologias nazistas.
A própria procuradora chegou a admitir, na reunião com o general, que não sabia avaliar, em um primeiro momento, se o símbolo do veículo que desfilou e foi divulgado na imprensa local seria nazista e, por isso, pediu informações ao Museu do Holocausto. Ao final da reunião, o general também informou que eles iriam se aprofundar sobre o tema e a representante do MPF sugeriu que participassem também dos cursos oferecidos pelo Museu do Holocausto para entender as simbologias neonazistas.
Investigação após notícia
A investigação do Ministério Público Federal teve início após o portal O Gazeteiro divulgar em setembro do ano passado a imagem do veículo que participou do desfile e informar que se tratava de um veículo com simbologia nazista. A partir daí, o MPF abriu um procedimento investigativo e solicitou informações ao governo do Estado do Paraná e ao Comando da PM no estado.
O comandante-geral da PM informou que o veículo não fazia parte da frota da polícia no Estado e que não desfilou junto ao grupamento da PM-PR no dia 7 de setembro de 2023. Ainda segundo o comandante-geral, a execução do desfile ficou a cargo da Artilharia Divisionária da 5ª Divisão de Exército.
Já o governo do Paraná encaminhou ao MPF uma manifestação do chefe da Casa Militar do governador, que informou que auxiliou no fornecimento de material para o desfile, como gradis e palanque, mas que a responsabilidade pelo “planejamento, organização, autorização e distribuição do desfile” é do Exército brasileiro.
“Face ao exposto, não tem conhecimento se ocorreu ou não o fato descrito, tão pouco possui qualquer informação a respeito de quem foi autorizado ou não a participar do Desfile de 7 de setembro que, frise-se, é de competência do Exército Brasileiro”, afirmou o chefe da Casa Militar do governo estadual.
A partir daí, o MPF acionou o Museu do Holocausto e o Exército e realizou a reunião com o general para esclarecer a situação no dia 23 de fevereiro. Na reunião, a partir das informações recebidas pelo general, a procuradora ainda afirmou considerar que a BPVMA não teria conhecimento que se tratava de um simbolo nazista e que iria conversar com eles.
Nos autos da investigação não há nenhuma imputação de crime ou ato ilícito ao proprietário do carro à época do desfile.
A reportagem conseguiu falar com Laércio na noite desta quarta-feira, (6). Ele afirmou que já vendeu o veículo e disse que o automóvel utilizado no desfile do 7 de setembro seria uma homenagem ao “Caroço dos Pracinhas”, nome dado a um veículo alemão que foi capturado pelos americanos e cedido aos pracinhas da FEB que estavam na Itália em 1944 e que reformaram o veículo. “Nosso intuito sempre foi enaltecer os pracinhas e os aliados, sempre foi isso, nada mais que isso”, afirmou Turra.
Questionado o motivo pelo qual essa versão não foi apresentada pelo general do Exército na reunião com o MPF, ele demonstrou surpresa e disse que havia feito um relato por escrito ao general José Ricardo Vendramin Nunes, que comanda a 5ª Divisão do Exército, e que teria se colocado à disposição dos militares para explicar a situação.
Ele chegou ainda a enviar um texto à reportagem pelo Whatsapp sobre a história do “Caroço dos Pracinhas”. O texto, porém, afirma que o veículo recebido pelos brasileiros na Segunda Guerra teria sido pintado no mesmo padrão dos demais veículos das tropas americanas “e por isso receberia apenas retoques na pintura, incluindo o mesmo emblema nacional aplicado as aeronaves Piper L-4H da ELO (círculo branco com a estrela da FAB ao centro) e a identificação da unidade em branco na traseira com a pintura de uma bandeira do Brasil”, diz o texto.
Questionado sobre o fato de o texto não ter nenhuma referência à cruz utilizada pelo exército alemão durante o regime nazista, ele encaminhou a seguinte mensagem: “Estou te dizendo que foi apenas para homenagear a FEB através da história que existiu ninguém fez com intuito de enaltecer os Alemães, e sim o Caroço dos Pracinhas e o carro foi pintado de verde sim e a bandeira do Brasil na frente e atrás, que e o que no Desfile estava, a foto tirada já o carro estava sendo recolhido do desfile para garagem”.
A reportagem também solicitou uma posição da Polícia Civil do Paraná, mas ainda não teve retorno.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Mateus Coutinho
Edição: Nicolau Soares
Foto: Reprodução/MPF