Por Flávia Lefèvre/Instituto Telecom/Mobiletime
“Pelas contas da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), do total de 2.900.121 de bens reversíveis associados às concessões de telefonia fixa, incluídos entre eles milhares de imóveis, milhares de quilômetros redes de telecomunicações e seus dutos, inclusive backhaul, rede que dá suporte à conexão a Internet, espalhados por todo o país, 1.426.414 viraram fumaça; ou seja, 49,18%, apontou o Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão 516/2023.
Diante desses números, a primeira pergunta que vem à cabeça é: se os contratos de concessão foram firmados com Telefônica, Oi, Brasil Telecom e Claro no contexto das privatizações, que aconteceram em julho de 1998, como é possível sustentar que milhares de bens possam ter desvalorizado a ponto de chegarem ao valor de zero? Especialmente quando se trata de dutos por onde passam cabos – obras de engenharia civil atravessando o Brasil inteiro, redes de cobre e backhaul podem ter seus valores considerados nulos?
Insegurança jurídica quanto à avaliação dos bens reversíveis pela Anatel
O TCU explica a mágica que a Anatel fez para chegar a zero: o resultado é consequência da “desconsideração do valor residual de expressiva parte dos ativos constantes das relações de bens reversíveis no cálculo” efetuado para apurar o valor econômico das concessões, que estão para se encerrar seja pela adaptação para autorizações, seja pelo fim do prazo contratual, sem que se tenha instaurado o devido “processo específico de valoração capaz de subsidiar essa conclusão”.
A Anatel diz que os cabos coaxiais, de cobre e de fibra e seus dutos não possuem valor residual, sob a falsa justificativa de que o custo para ativos “são superiores ao seu valor” e por isso atribui valor nulo para esses ativos. Porém, há avaliações da LME Maxiligas indicando que, por exemplo, o cobre possui alto valor, com a cotação média de U$ 8.831,33/tonelada.
A situação é escandalosa! Segundo o TCU, os bens reversíveis representam a maior parte do valor econômico do saldo das concessões de telefonia fixa que, ou serão convertidas em autorizações, nos termos da Lei 13.879/2019, que alterou a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), ou se extinguirão em 2025. Em qualquer das duas hipóteses, haver certeza com relação ao valor dos bens reversíveis é imprescindível para evitar um prejuízo na casa dos R$ 100 bilhões para os cofres públicos.
Sem segurança jurídica sustentando a avaliação desses bens, a União poderá, além de perder um patrimônio estratégico e relacionado ao exercício da soberania do país no campo das comunicações, ter de indenizar as concessionárias, como elas têm demandado já há três anos, pretendendo receber mais de R$ 38 bilhões, se beneficiando dos artifícios ilegais que estruturam a metodologia econômica utilizada pela Anatel, configurando-se um cenário de malversação de recursos públicos e de improbidade administrativa.
O TCU, ao avaliar o método de valoração apresentado pela Anatel para chegar ao valor econômico dos contratos, afirma o seguinte:
“observa-se que, para expressiva quantidade dos ativos contidos nas relações de bens reversíveis, o processo de depreciação dos ativos ocorre até que seu valor contábil líquido seja igual a zero. Em outras palavras, a metodologia aprovada pela agência aponta pela inexistência de qualquer valor econômico associado com parte considerável dos ativos ao final de sua vida útil.
236. Ainda que seja possível concluir pela referida inexistência de valor econômico associado com determinados itens do ativo, faz-se necessário seguir um processo específico de valoração desses itens antes que seja possível partir para tal conclusão. Ao longo do presente trabalho de acompanhamento, afirma-se não ter sido observada a realização de um processo de valoração nas RBRs que pudesse subsidiar essa hipótese.
(…)
238. Deste modo, a Anatel e a consultoria Axon concluíram o cálculo da parcela ?1, descartando todos os bens reversíveis que, segundo esses cálculos, teriam valor contábil líquido nulo (peça 101, p. 29).”
Em outras palavras; sem adotar procedimentos necessários para que se avaliassem bens públicos, cujo valor estimado pelo TCU pode estar em torno de R$ 121 bilhões, a Anatel e a consultoria por ela contratada, deixando de adotar os métodos legais, concluíram que 49,18% do acervo virou fumaça.
Organizações da sociedade civil em defesa da universalização e o Poder Judiciário
Entidades que integram a Coalizão Direitos na Rede (CDR), em junho de 2020, ajuizaram Ação Civil Pública contra a Anatel, que ainda está em curso, questionando a metodologia editada pela agência, dando ênfase justamente às ilegalidades relacionadas aos bens reversíveis.
O interesse das entidades representativas dos consumidores, do direito à comunicação e voltadas para a inclusão digital é legítimo e se justifica porque, no caso de haver migração das concessões para autorizações, é o valor econômico atribuído àqueles contratos que será “revertido em compromissos de investimento, priorizados conforme diretrizes do Poder Executivo”, que “priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades” (art. 144-B, LGT).
Ou seja, é fundamental que se avalie com muita precisão o valor econômico das concessões, pois o que for apurado e transferido para o patrimônio privado das concessionárias deverá ser revertido em contrapartidas para novos investimentos em infraestrutura para atender a demanda de milhões de cidadãos de baixa renda em áreas periféricas dos grandes centros e áreas remotas do país por acesso significativo a Internet.
Além disso, as entidades da CDR estão executando a sentença obtida em outra Ação Civil Pública movida ainda em 2011, por meio da qual a Justiça Federal de Brasília condenou a União Federal e a Anatel a anexarem aos contratos de concessão o inventário dos bens reversíveis, uma vez que, descumprindo a lei, em julho de 1998 quando da privatização, entregaram todo o acervo de bens públicos, vale repetir – milhares de imóveis que só se valorizaram de lá para cá, redes públicas, dutos, antenas entre outros bens, sem nenhum controle.
E, ainda, a agência só em 2007 estabeleceu um regulamento de controle desses bens, por determinação do TCU. Ou seja, ficamos 9 anos sem fiscalização sobre esse patrimônio, em razão do que se perderam bilhões de reais em virtude de alienações sem nenhum controle, como atesta relatório de auditoria realizado pela própria Anatel em 2007.
Foi esse quadro que levou o TCU, em Acórdão de 2019, a determinar à Anatel a adoção de uma série de providências para que se pudesse apurar com segurança o valor dos bens reversíveis, bem como fosse verificada a ocorrência de malversação de recursos públicos por responsabilidade pessoal de agentes públicos; e, pasmem, na última sessão de julgamento da Corte de Contas, em 27 de março último, o processo que foi instaurado para a apuração de responsabilidades foi arquivado, sob a justificativa apresentada pelo relator Ministro Benjamin Zymler no sentido de que “faltam elementos essenciais de responsabilização”, bem naquele espírito brasileiro de condescender com os mal feitos, por mais graves que eles sejam, como neste caso.
Porém, é curiosa esta conclusão na medida em que, o próprio TCU, em decisão proferida no Acórdão nº 2142/2019, por voto unânime que teve como relator o Ministro Walton Alencar Rodrigues, afirmou que:
“Mencionei que, mesmo após vinte anos de concessão, a agência reguladora não é capaz de informar, com mínimo grau de precisão, quantos são, onde estão e qual o valor dos bens reversíveis colocados à disposição das concessionárias STFC em 1998, nem dos hoje existentes, muito menos o valor apurado pelas concessionárias com as alienações desses bens no período.
Também que a Anatel não tem a menor ideia da parcela não amortizada dos bens reversíveis hoje existentes, nem possui elementos para a calcular.”
Portanto, tudo indica que a tunga aos cofres públicos será bilionária e a lesão profunda para as políticas públicas de inclusão digital será irrecuperável, caso esse cenário não seja revertido e o TCU e o Poder Judiciário deixem de cumprir com suas atribuições e deixem de atuar para garantir o interesse público.
É certo que no Acórdão 516/2023 o TCU determinou que a Anatel “adote as providências devidas para adequar os cálculos da parcela” que engloba os bens reversíveis do valor econômico da adaptação, (…), de modo a abster-se, principalmente em relação aos bens mais relevantes economicamente, de utilizar valores que sejam significativamente discrepantes da efetiva valoração de mercado desses bens, abarcando, no mínimo, as classes de ativos constituídas por edifícios, terrenos, postes, torres, dutos, cabos de fibra óptica, direitos de passagem e equipamentos ativos de rede” de acordo com as exigências expressas pela LGT, art. 204 do Regimento Interno da Anatel, Resolução Anatel 612/2013 e Manual de Contabilidade Aplicada ao Setor Público (MCASP).”
Vai dar acordão?
Entretanto, as perspectivas não nos deixam confortável para sermos otimistas. Isto porque, em dezembro de 2022, o TCU baixou a Instrução Normativa nº 91, que instituiu “procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal”, e os conflitos em torno dos bens reversíveis entraram nesse novo regime, ficando suspensos todos os outros processos que apuram sobre esses bens, sendo que já se tem notícias de acordo sobre linhas gerais para a migração da concessão da Oi firmado em 22 de março último.
E pior é que, em 13 de março deste ano, o TCU em Questão de Ordem, asseverou que, a despeito de as decisões da Corte não poder prescindir da “opinião prévia dos auditores, (…,) a opinião dos auditores não pode obstar a deliberação do Plenário, especialmente quando há divergência entre as unidades de auditoria”; o que significa dizer que nos procedimentos instaurados para consenso, ainda que a auditoria aponte empecilhos para o acordo, o Plenário poderá decidir em contrário.
Sendo assim, tudo indica para que um acordão está prestes a ocorrer, passando por cima de decisão judicial transitada em julgado, de decisões anteriores do próprio TCU e em prejuízo bilionário para a União Federal, com o risco real de se atribuir o direito à indenização para as concessionárias por alegado e inadmissível desequilíbrio das concessões.
Há dez anos, em outra ação civil pública ajuizada pela PROTESTE – Associação de Consumidores também visando a defesa dos bens reversíveis cantamos a bola de que a ação omissiva e ilícita da Anatel nesse campo, como reconhecido pelo próprio TCU em diversos acórdãos, viabilizaria a pretensão indenizatória abusiva e descabida por parte das empresas, para além da perda volumosa de bens reversíveis, que, pela LGT, deveriam retornar à posse da União ao final dos contratos de concessão.
E a responsabilidade da Anatel por essas perdas ilegais foi também reconhecida em decisão proferida pelo então Presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, naquela ação ajuizada pela PROTESTE ainda em janeiro de 2009, quando afirmou que a agência deveria “assumir, nos autos e perante a História”, a responsabilidade por criar um cenário de incertezas que só beneficiariam o interesse privado em detrimento da democratização do acesso à Internet e da universalização da banda larga no país.
Conclusão
A adaptação das concessões para autorizações da telefonia fixa, que inicialmente tinha a anunciada intenção de produzir investimentos para serem aplicados na universalização da banda larga em nosso país, virou uma forma de escamotear incompetências, de criar normas de resolução de litígios pouco transparentes, de prover respaldo para livrar as operadoras de pagamento pelos bens reversíveis, no intuito inclusive de facilitar recuperações judiciais de empresas privadas. E quem pagará por isso será a União; diga-se nós cidadãos!
Flávia Lefèvre é advogada especialista em telecomunicações, direitos do consumidor e digitais, e faz parte do Conselho Consultivo do NUPEF – Núcleo de Pesquisa, Estudos e Formação
Instituto Telecom, Terça-feira, 16 de abril de 2024