Do “subdesenvolvimento” à força geopolítica: Como os países do Sul Global e da América Latina têm se projetado no cenário internacional?

“Agora nós viramos o mapa de cabeça para baixo, e então temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não como o resto do mundo deseja. O ponto da América, de agora em diante, para sempre, aponta insistentemente para o sul, nosso norte”, afima Joaquín Torres García em seu manifesto “A Escola do Sul“. A declaração foi feita anos antes de produzir o mapa conhecido como “A América Inverdida”, publicado em 1943. Em sua obra, ele apresenta a América do Sul orientada com o sul no topo, repercutindo a influência de países do norte na região.

 


O debate tem sido novamente trazido a tona em decorrência do atual contexto geopolítico. Países que, por muitos anos, estiveram à margem das discussões políticas têm conquistado cada vez mais espaço e relevância no cenário internacional, pautando e colocando na agenda problemas como, por exemplo, o da crise ambiental.
Essa nova dinâmica fez com que uma nova nomeclatura se tornasse popular: o “Sul Global”. A expressão busca contrapor a ideia de inferioridade ante nações “desenvolvidas” e projetar força política a partir de um lugar fora do eixo  ‘Norte’”.

Tendo em vista esse cenário, diversos especialistas, pesquisadores e também pessoas ligadas à política pública, às relações internacionais e à política externa de diferentes países se reuniram no Rio de Janeiro para discutir, em um diálogo social entre academia e sociedade civil, as tendências dessa reorganização geopolítica. O encontro, intitulado “A nova dinâmica das relações Sul-Sul e os desafios da integração latino-americana”, aconteceu entre os dias 22 e 25 abril, no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Cbae/ UFRJ). Na organização do evento, estiveram membros do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO),  e do Núcleo de Pesquisa de Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial da UFRJ (GIS /UFRJ).

Segundo Monica Bruckmann, organizadora do simpósio e coordenadora do Núcleo de Pesquisa, “é fundamental desenvolver uma compreensão profunda das mudanças do sistema mundial que permitam entender, com mais propriedade, os desafios da América Latina neste novo contexto. Nunca antes, na história moderna, os países do Sul tiveram tantas condições de conduzir os rumos da economia e da política mundial.” 

Contexto econômico

No que diz respeito à conjuntura econômica, o Brics tem desempenhado um importante papel não apenas a nível regional, mas também global. O grupo é formado pela África do Sul, Rússia, Índia, China e Brasil, e, desde janeiro, inclui países produtores de petróleo, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã, além do Egito e Etiópia. 

Entre os pontos que vêm sendo debatidos pelo bloco está uma possível associação monetária entre os países do grupo como alternativa ao dólar americano. A proposta já conta inclusive com uma provável unidade de conta, o R5, em referência à inicial das cinco principais moedas locais: real, rublo, rúpia, renminbi e rand. 

Acadêmicos e especialistas que estiveram no seminário trouxeram diferentes opiniões sobre o tema. De um lado, há aqueles que argumentaram que a iniciativa constituiria uma ameaça ao dólar. Outras visões, contudo, indicaram que trata-se de um processo muito incipiente e que o dólar, portanto, ainda vai desempenhar um papel central como reserva de valor por um longo período. 

A ascensão de uma nova arquitetura financeira foi outro tópico que ganhou destaque. “Há uma espécie de reconstrução em direção a um confronto no setor financeiro entre os Estados Unidos e a China”, destacou Bruckmann. Ela complementa ainda que o cenário contrasta com aspectos históricos que vão de encontro à “possibilidade de pensar em um banco de desenvolvimento capaz de financiar a infraestrutura e tudo o que demanda um processo de integração e de políticas de desenvolvimento a partir das economias nacionais e regionais”.

 Nesse contexto, Sun Hongbo, professor da Academia Chinesa de Ciências Sociais (ILAS-CASS), explica que a China desempenha um importante papel como fornecedor de bens públicos. Além disso, ele acrescenta que uma cooperação igualitária pode resultar em benefícios. “Sem cooperação, como podemos gerar benefícios? […] Nós precisamos de novas ideias para entender desafios novos. Como podemos nos beneficiar da revolução digital e promover cooperação, por exemplo?”, questiona. 

Ele analisa também a relação que o páis vem desenvovlvendo com a América Latina: “Durante duas décadas é possível encontrar os dois lados beneficiando-se mutuamente através de corporações de energia e investimentos em tecnologia”. “Dentro dos Brics podemos melhorar a governança global e produzir mais bens públicos, além de estabilidade financeira. Podemos ainda desenvolver mais equilíbrio. Nossa voz pode ser ouvida”, conclui o professor. 

Marina Sheresheve, professora da Universidade de Lomonosov, propõe uma ideia parecida ao afirmar que a Rússia pode ser considerada uma parceira igualitára no diz respeito às relações entre o Sul Global. Como exemplo, ela também cita as colaborações do páis com os Brics. Para a pesquisadora, esse tipo de parceria representa “competências, oportunidades e mentalidades diferentes que podem ser combinadas”. 

Na América Latina, por exemplo, Sheresheve destaca que existem alguns setores industriais muito elaborados e outros não. “Podemos ver que esses países têm tecnologias em áreas em que não estamos muito habituados, e vice-versa. Portanto, é importante combinar o que temos, entender como fazê-lo e tirar proveito dessa combinação”.

Soberania, recursos naturais e processos democráticos

  A soberania, tanto nacional quanto regional, é mais um eixo central desse debate. Para Monica Bruckmann, ela representa a “possibilidade de estabelecer uma cooperação científica e tecnológica internacional com base nas necessidades e interesses de nossos países, e não com base no que tem sido feito de maneira bastante ampla, transferindo recursos da região para financiar processos de formação de nossos cientistas e centros de pesquisa mais desenvolvidos do mundo”.

“Sem soberania nacional e soberania regional, é impossível pensar na gestão dos recursos naturais a partir da perspectiva dos interesses nacionais; é impossível pensar até mesmo na construção e formação de processos democráticos”, destaca a pesquisadora. Irene Véles Torres, ex-ministra de Minas e Energia da Colômbia, complementa esse raciocínio ao ressaltar a posição de vulnerabilidade socioecológica da região latino-americana.  

De acordo com ela, é fundamental que “as nossas histórias e legados de desigualdade e de danos ambientais acumulados, como degradação, ampliação de fronteiras agrícolas, perda de biodiversidade e ampliação de fronteiras minerais sobre ecossistemas estratégicos” sejam considerados de forma diferenciada. Outro grande desafio apresentado por Torres é a abordagem de políticas de transição energética a partir de um distanciamento de um eco-capitalismo. 

“É precisamente através dessa agenda que podemos reduzir as lacunas de desigualdade e não o contrário. O que estamos vendo até o momento é que a agenda da Transição Energética acaba por agravar o empobrecimento das comunidades marginalizadas historicamente. Isso acaba por deteriorar os territórios que já possuem cargas ambientais e ecológicas realmente insustentáveis”, explica.

Quanto aos processos democráticos na América Latina, Sérgio Sant’Anna relembra os reflexos deixados pela Doutrina Monroe, estabelecida em 1823, que veio se tornar símbolo da preocupação dos Estados Unidos com as questões políticas e geopolíticas do continente.  “Eles não hesitam em utilizar todas as estratégias possíveis, desde soft power, ou seja, aquelas estratégias mais suaves de dominação através da cultura, arte, música, cinema, negociações comerciais, cursos bilaterais, até o hard Power, incentivando golpes de estado, desestabilização política e criando uma série de problemas de um país com outros”.

A partir dessa ótica, Sant’Anna, que é procurador federal e membro do Clacso (Conselho Latino-Amricano de CIências Sociais), detalha os impactos das medidas na conjuntura atual: “Isso tem relação até com a eleição que nós vamos ter agora no final do ano nos Estados Unidos. Os seus desdobramentos através de uma radicalização, seja pelos governos democratas, na continuidade do Biden, seja pela volta do Tump, pode dificultar e criar alguns entraves para o nosso processo de integração regional”.

Movimento coletivo

As temáticas abordadas pelos especialistas continuarão sendo debatidas pelas próximas semanas, não apenas no âmbito acadêmico, mas também, pela sociedade civil. A ideia é que as discussões sejam enriquecidas coletivamente. Bruckmann reforça que essa construção trata-se de um dos pilares do evento: “A participação da juventude teve um papel coletivo muito importante para cada um de nós, e é nesse sentido coletivo que se conseguiu a riqueza do que foi debatido aqui”. Ela explica ainda que a ideia é iniciar um movimento intelectual com a participação de movimentos e setores populares da sociedade. 

Um dos resultados esperados do encontro é o Manifesto pela Integração Latino-Americana, que está em produção, mas ainda não data de lançamento definida. O objetivo é que documento seja apresentado com um conjunto de adesões a nível global até o mês de novembro, por ocasião da cúpula do G20 no Rio de Janeiro. 

Texto: Ruth Scheffler
Foto: Canva

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