Fake News: regulação nunca foi tão urgente, mas cenário é adverso após abandono do PL 2630

Investidas da internacional fascista e gabinete do ódio trabalhando a pleno vapor em meio à tragédias no RS explicitam o vácuo jurídico deixado sobre algumas das principais ferramentas de comunicação e informação da população brasileira

“Há uma ditadura do judiciário no Brasil” ou “O governo federal não está ajudando as vítimas das chuvas no RS”. Ambas as informações são falsas, mas circularam em redes sociais, chegando a milhões de pessoas. A verdade veio depois, resultado de um esforço da mídia e do campo progressista, mas sabe-se que, em tempos de conteúdos na distância de um click, a desinformação não volta atrás: uma vez feito o estrago, não há errata que resolva. Sem a regulamentação das redes e mídias sociais, não há saídas para evitar a desinformação e seus profundos impactos na opinião pública: por enquanto, nas redes, o crime compensa.

O Legislativo tocou o PL 2630, que tratava do tema, por quatro anos. A tramitação foi, de um lado, acompanhada por discussões e audiências públicas, em colaboração direta de entidades e movimentos de telecomunicações e direitos e, por outro, de um pesado – e caro – lobby das big techs. O projeto, engavetado desde 2023, após a segunda tentativa frustrada de votação, poderia voltar ao debate na busca de consensos com a aprovação como objetivo. Mas Lira discordava.

No início de abril, o presidente da Câmara decidiu, por achar o projeto “polêmico” e por “não haver consenso” por conta de “disputas ideológicas”, resetar todo o processo: propôs a formação de grupo de trabalho reunindo as lideranças da Casa para a construção de um novo projeto. Do zero. Segundo ele, com um grupo “mais maduro” seria capaz de, em poucos meses, encontrar o consenso não alcançado desde 2020. O grupo de trabalho, até o momento, não foi constituído.

Segundo Marcio Patusco, vice-presidente do Clube de Engenharia e membro de sua divisão técnica de Eletrônica e Tecnologia da Informação, caso as discussões não considerem o texto anterior, dado o atual perfil do Legislativo, o cenário é preocupante. “Levando-se em conta o caráter conservador da Câmara, existe um grande risco de que interesses políticos e econômicos se interponham, e que não se fique restrito apenas na busca de um equilíbrio adequado entre a proteção dos direitos dos usuários e a responsabilidade das plataformas. A polarização político-ideológica e interesses econômicos poderão afetar uma discussão de soberania nacional e direitos fundamentais, como liberdade de expressão e privacidade online”, alerta.

Tão preocupante quanto, é o fato de que o entendimento de Lira não bate com o de muitos dos atores envolvidos nos debates, estudos e articulações dos últimos quatro anos, quando o projeto esteve sob a relatoria do deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Enquanto Lira fala de um texto eivado de problemas de difícil solução, o entendimento geral é de que já se havia chegado a uma versão – bastante modificada no processo – na qual os temas mais sensíveis haviam sido pacificados. “Vale salientar que o atual PL 2630 passou por consolidação que envolveu governos distintos e havia encontrado uma proposta relativamente estável”, aponta Patusco.

“Esperamos que o GT criado para discutir o PL 2630 não se afaste do seu texto consolidado durante anos. Nem que Câmara não se debruce imediatamente sobre seus principais aspectos a ponto de não atender aos requisitos de urgência já evidenciados nos últimos debates. E que encontre o equilíbrio necessário na proteção e necessidade da adequada informação de nossa sociedade. Por ter um conhecimento profundo do assunto, em sua mediação adequada nos aspectos fundamentais do PL, mesmo sabendo que na Câmara normalmente a troca do relator no encaminhamento de revisões é corriqueira, achamos que a manutenção do atual relator, deputado Orlando Silva, seja importante para não passar a ideia de ruptura de um processo de repercussão internacional em andamento, e manter foco no delicado equilíbrio das manifestações em plataformas digitais”, declara o engenheiro.

A realidade se impõe

A regulação das redes sociais voltou a ganhar destaque após publicações de Elon Musk, dono da rede social Twitter/X, contra o ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes. O bilionário, dono da Tesla e da Starlink, que vem fazendo aproximações com a extrema-direita, em especial na América Latina, declarou que iria desobedecer às restrições judiciais impostas pela justiça e que “Moraes traía a Constituição e o povo brasileiro”. No mesmo dia, o ministro do STF incluiu Musk entre os investigados no inquérito das Milícias Digitais. No legislativo, progressistas defenderam a colocação do PL das Fake News em pauta. A oposição saiu em defesa de Musk, alegando censura e desrespeito à liberdade de expressão.

Pouco mais de um mês depois, com o PL enterrado, relator dispensado, grupo de trabalho para tratar do tema indefinido, uma catástrofe climática atinge o Rio Grande do Sul e as Fake News voltam à cena com força total. Parlamentares, artistas e militantes de extrema-direita somaram ao caos climático um trabalho diligente de desinformação, em meio a um cenário de mortes e milhares de desabrigados.

A agora completa imobilidade do Congresso em relação ao tema forçou o Governo Federal, alvo da investida, a buscar socorro no Judiciário: o Executivo encaminhou ao STF pedido de investigação sobre as fake news a respeito das chuvas e das medidas de socorro em curso no Rio Grande do Sul. A investigação foi instaurada separadamente do inquérito das Fake News, sob responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes. A ministra Carmem Lúcia ficou responsável pelo inquérito. Em resposta, deputados do PL e Podemos convocaram os ministros Paulo Pimenta, da Comunicação Social, e Ricardo Lewandowski, da Justiça e Segurança Pública, para esclarecimentos.

Entraves e caminhos possíveis

Os impasses devem continuar acontecendo por, como aponta Patusco, terem em seu cerne a liberdade de expressão, privacidade, acesso à informação e soberania nacional: “Esses direitos formam as bases de qualquer projeto que trate de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. A busca do equilíbrio entre combater a desinformação e preservar esses direitos será o desafio de qualquer novo texto”.

Outra discussão, que gerou muita mobilização e fortes posicionamentos, e que acabou por não fazer parte do texto do PL 2630, foi a questão da fiscalização de sua aplicação. Várias propostas foram aventadas e nenhuma delas pareceu ter larga aprovação, um dos motivos pelos quais o próprio relator não o colocou para aprovação final”, aponta Patusco.

Felizmente, o cenário mundial vem mostrando ser possível equilibrar os interesses econômicos e políticos. De acordo com características locais, vários países já vêm adotando iniciativas de regulamentação das atividades das big techs. Segundo Patusco, o destaque é para a União Europeia: “Através de seguidas leis (GDPR, DSA e DMA), a UE tem servido de inspiração para desenvolvimento de regulamentações em outros países, inclusive a do Brasil, como admite o próprio relator. A regulamentação das grandes plataformas digitais são preocupações também de países como Estados Unidos, China, Austrália, Índia, Canadá, Japão, Coreia do Sul, entre outros. Por ser uma questão sensível e recente, fica claro que, muito embora seja urgente sua aplicação, deve-se admitir a possibilidade de avaliações e ajustes em benefício de uma regulamentação que consolide um posicionamento autônomo e soberano confrontado com interesses comerciais e políticos”. 

Em abril, para colaborar com o novo momento do processo regulatório, a Coalizão Direitos nas Redes lançou o relatório “Referências Internacionais em regulação de plataformas digitais: bons exemplos e lições para o caso brasileiro“. O documento traz experiências de 71 países e blocos regionais e foi elaborado a partir da análise de 104 leis.

 

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto: Alpha Stock Images

 

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