À medida que mais aspectos do cotidiano passaram e ser acessados por ferramentas digitais, as fronteiras que separam a vida real da virtual se enfraqueceram. As redes sociais passaram a ser um importante canal de informação: a geração Z já pesquisa mais no TikTok que nos mecanismos de busca. Neste cenário, as redes sociais construíram seu modelo de negócio com base na retenção da atenção dos usuários. Para isso, criaram os algoritmos que definem o que cada pessoa verá em sua tela: um conteúdo formatado que cria bolhas, privilegia o engajamento gerado por notícias falsas e, claro, gera muito lucro para as plataformas digitais.
Entrevistado do Soberania em Debate de 09/05, o deputado Orlando Silva (PCdoB-SP) falou sobre quase meia década de articulações e negociações envolvendo entidades da sociedade civil, academia, parlamentares e empresas focadas em buscar um consenso para a construção da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Orlando foi relator do “PL das Fake News”, como ficou conhecido o Projeto de Lei n 2630, construído a muitas mãos e que chegou a 2024 já bastante lapidado em seus pontos mais sensíveis.
A urgência imposta pela proximidade das eleições, o caos gerado por notícias falsas durante a tragédia no Rio Grande do Sul e as ameaças de Elon Musk de descumprir ordens da justiça brasileira deveriam trazer o projeto de volta à pauta mas, ao contrário, o enterrou de vez. A decisão de Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Vereadores, foi começar o debate do zero com a criação de um grupo de trabalho dedicado ao tema. Até agora, o grupo não foi criado.
Integrante da base do Governo, Silva destaca que a regulação das mídias digitais deveria ser colocada na agenda do Governo, mesmo sabendo que a conjuntura no Congresso é desfavorável.
Ele cita o Marco Temporal como exemplo: “O presidente Lula sabia que seu veto ao Marco Temporal seria derrubado. Não tenho dúvidas disso. Mas ele vetou por conceitos e valores. A esquerda parou de fazer essa disputa. Somos obrigados a assistir a direita e a extrema-direita disputando valores e mobilizando pessoas em torno de temas obscurantistas. Precisamos voltar a sonhar, pensar o impossível, não se adaptar à política fiscal que repete a do governo anterior. Estamos renunciando a disputas estratégicas. O presidente Lula sempre coloca essa agenda internacionalmente. No Brasil, tudo fica adormecido. Temos que fazer esse enfrentamento na dimensão política”, defende.
Exemplos e impasses
Segundo Orlando Silva, há tres modelos de regulação: o chinês, o americano e o europeu. Na China, o país investiu na criação de suas próprias big techs (com destaque para o TikTok) e na guarda dos dados de seus cidadãos. Embora o modelo seja interessante, o deputado destaca que as diferenças econômicas, políticas, sociais e culturais inviabilizam a aplicação do modelo no Brasil.
Na base dos modelos americano e europeu está uma questão geopolítica fundamental. “O modelo americano é aquele que busca proteger os interesses das empresas, não por acaso sediadas nos EUA. O discurso é sustentado pela Primeira Emenda da Constituição americana, que define a liberdade de imprensa como um valor absoluto. Neste modelo, fortemente defendido pela extrema-direita brasileira, as plataformas não são responsabilizadas pelo conteúdo publicado”, explica o deputado.
O modelo brasileiro, que vinha sendo articulado desde 2020, foi em grande parte inspirado pelo modelo europeu, que tem como âncora a proteção de direitos fundamentais. “Zelosos dos direitos de zeus cidadãos, os países europeus estabeleceram regras que, ao mesmo tempo que incentivam a inovação e a abertura de seu mercado, por outro, salvaguardam direitos, exigem a devida avaliação de conteúdos e buscam a transparência. Essa é a perspectiva defendida pelo governo Lula, pela sociedade civil, acadêmicos e movimentos sociais”, aponta Orlando.
Vácuo legislativo
Como já aconteceu com outros temas urgentes, a imobilidade do Congresso vem forçando a ação dos outros Poderes da República. Provocado pelo Executivo ou pela sociedade civil, o Judiciário é obrigado a agir, somando à equação o desgaste do atrito entre poderes.
Essa novela está prestes a ser reprisada em Brasília: desde maio de 2023, o ministro Dias Toffoli tem aguardado a votação do tema na Câmara dos Deputados – inicialmente marcada para maio de 2023 – para liberar para julgamento um recurso que discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. O dispositivo determina ser responsabilidade das plataformas digitais os danos causados por conteúdos gerados por terceiros. No dia em que Lira enterrou o PL 2630, Toffoli publicou nota declarando que o recurso será liberado até julho. O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, então, marcará o julgamento.
“Defendi muito que o Judiciário precisava ter um pouco de paciência porque esse assunto precisa de deliberação em lei. Mas o Poder Judiciário não pode se omitir. Havendo o questionamento, ele precisa se manifestar, diferente dos outros poderes. O Legislativo não cumpriu seu papel e o Judiciário irá deliberar no vácuo do Legislativo. E, mais uma vez, apontarão o dedo para o STF, denunciando ativismo judicial, os mesmos parlamentares que obstruem a deliberação no Congresso.
Para as eleições, a segurança mínima vem sendo garantida também pelo Judiciário, através do Tribunal Superior Eleitoral (STE), que importou do PL 2630 temas sensíveis para garantir a lisura do processo eleitoral.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Rodrigo Mariano/Senge RJ – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil