A questão do porte de drogas para uso pessoal | Jorge Folena

Este é apenas mais um daqueles debates que expõe de forma clara a persistência do colonialismo e o posicionamento da classe dominante

Por Jorge Folena*

No entendimento de Max Weber, “o nível alto ou baixo de um parlamento depende não somente do fato de ele falar de grandes problemas, mas também de resolvê-los adequadamente.”

Menciono o sociólogo alemão por acreditar que a questão das drogas não recebeu do parlamento brasileiro o encaminhamento adequado em relação ao tema, cujo problema mais grave reside no fato de a classe dominante ter optado por criminalizar a juventude negra, pobre e periférica.

Na realidade, a farsa que se convencionou denominar de “guerra às drogas” consiste em uma disputa pelo controle econômico e financeiro sobre a indústria das drogas, pois cocaína, crack e outras substâncias entorpecentes não são fabricadas nas favelas brasileiras, onde também não se encontram as vastas plantações de maconha que caracterizam a atividade.

Em decorrência dessa falsa guerra, o crime que mais prisões acarreta por todo o país, sem dúvida, é o tráfico de drogas e, de modo geral, a maioria das pessoas encarceradas por este delito são jovens negros que não completaram o ensino fundamental, e que, a partir do ingresso no sistema prisional, deixam de ter qualquer perspectiva de futuro.

Do mesmo modo, nas incursões repressivas realizadas todos os dias nas periferias, são os filhos de negros e pobres que são mortos, sendo suficiente a colocação do adjetivo “traficante” sobre as vítimas para justificar seu assassinato perante a opinião pública, ainda que se trate de crianças uniformizadas a caminho da escola.

Na verdade, afirma-se que há interesse em reprimir o comércio de drogas, porém não são apresentadas iniciativas para identificar e controlar o imenso giro financeiro em torno deste importante mercado, que não paga tributos nem tem seus trabalhadores (“traficantes”) regulamentados.

Entendo que a repressão não deveria recair sobre o usuário e nem mesmo sobre vendedores ambulantes, mas sobre a grande movimentação financeira envolvida nesta atividade, cujos reais controladores não são reprimidos nem assassinados diariamente. E qualquer apreciador de programas investigativos sabe que a primeira regra para desvendar esse tipo de delito é: siga o dinheiro (o famoso follow the money).

O debate em torno da não criminalização do porte de drogas para uso pessoal deveria se ater à definição da quantidade que caracteriza esse consumo, mas do modo que está sendo colocado na Corte Constitucional atinge apenas uma parcela da população (usuária de maconha).

É importante esclarecer que a lei fala em posse, para consumo pessoal, de droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ou seja, não fala exclusivamente sobre a posse de maconha; porém, do modo como está interpretando o tribunal, limitando-se à maconha, caminha em sentido contrário ao previsto na lei, que fala expressamente em drogas (sentido amplo).

Independentemente de haver ou não aplicação de sanção administrativa (não criminalização) ou penal, como está em debate no STF, a lei de drogas em vigor (art. 28, parágrafo segundo) entrega ao poder discricionário do juiz definir se a quantidade encontrada se caracteriza como de uso pessoal ou não, e para isso “atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Neste ponto, como destacou Max Weber, o parlamento não resolveu adequadamente a questão sobre o uso pessoal de drogas, e acredito que não se trata de mero equívoco, mas de uma decisão intencional para permitir que uma parcela da população (branca e de classe média e alta) não seja criminalizada, enquanto os pobres ficam entregues à discricionariedade de uma justiça preconceituosa e racista.

Infelizmente, este debate expõe um grave equívoco político da sociedade, pois entregar a solução ao Supremo Tribunal Federal reforça a judicialização da política. Mas entendo que o problema não está no Judiciário, que foi chamado a se posicionar sobre o tema e está apresentando seu entendimento a respeito.

Na verdade, o erro é do Parlamento, que não tem intenção de resolver adequadamente a questão da criminalização ou não das drogas no país; assim, são os seus integrantes quem de fato devem ser chamados à responsabilidade, diante da grande movimentação financeira e, consequentemente, do não pagamento dos tributos que a sociedade deixa de arrecadar.

Essa não tributação acarreta sérias consequências, principalmente num país em que se impõe a manutenção de um limite sobre as despesas públicas, mas que necessita cada vez mais do ingresso de receita orçamentária para encaminhar as políticas públicas que ajudam a materializar os direitos dos mais pobres.

Por fim, acredito que o uso pessoal da maconha com finalidade recreativa ou terapêutica é uma decisão de cada um; até porque existem diversos estudos científicos que demonstram que a substância não causa graves problemas de saúde aos usuários, já estando liberado o seu uso comercial (controlado ou não) em diversos países.

Portanto, este é apenas mais um daqueles debates que expõe de forma clara a persistência do colonialismo e o posicionamento da classe dominante de um país que optou por declarar uma “guerra” de extermínio à sua juventude pobre, negra e periférica.

 


 

*Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.

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