Os resultados do primeiro turno das eleições municipais do início de outubro foram um baque para as esquerdas. Análises da conjuntura se multiplicaram, já a partir do dia seguinte. Onde erramos? As eleições municipais de 2024 podem ser consideradas perdidas? Por que o número de votos não reflete os avanços expressivos na economia nacional e os impactos positivos na vida do trabalhador? O que precisamos fazer para reverter este estado de coisas?
Para responder essas difíceis perguntas, o Soberania em Debate de 17 de outubro convidou o diretor de Cooperação Internacional da Fundação Perseu Abramo, Valter Pomar, que apresentou uma avaliação cirúrgica dos números revelados pelas urnas. Sem meias palavras, fez, também, o que muito se cobra de seu partido: uma autocrítica sincera, direta, sem constrangimentos.
Militante do Partido dos Trabalhadores desde 1980, tendo ocupado inúmeros cargos na organização partidária nessas quatro décadas, Valter expôs um cenário dramático que exige ação imediata. Segundo o historiador, doutor em História Econômica e professor da pós-graduação de Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC, uma leitura definitiva da conjuntura só poderá ser feita após o segundo turno, cujos resultados serão decisivos para as eleições de 2026. Destacou, também, que as esquerdas vêm errando sucessivamente, e que sem uma correção de curso, nem Lula será capaz de impedir o retorno da extrema-direita ao poder.
“Nós só vamos criar um ambiente favorável à reeleição do presidente Lula e à manutenção das esquerdas no governo se alterarmos o ambiente macroeconômico do país. O foco não deve ser no crescimento de 1,2%. Essa é uma visão economicista, medíocre e equivocada”, destacou. É preciso, segundo ele, uma virada de chave, uma mudança da própria lógica na avaliação do desempenho do governo. Em vez de focar nos números de mercado, Pomar aponta o que deve realmente importar: houve mudanças no ambiente macroeconômico? O país está caminhando para se industrializar? O Brasil avança para se libertar da ditadura do capital financeiro?
“O grande problema é que nós não conseguimos, nesses dois anos de governo Lula 3, seja por influências de nossos aliados, por incapacidade nossa, ou pelo peso da chantagem da maioria do Congresso e dos meios de comunicação, redirecionar o rumo do país do ponto de vista macroeconômico”, alertou.
É preciso, ao menos, tentar
Pomar destacou que optamos pela conciliação e abrimos mão de pautas importantes sem sequer tentar vencê-las. Para ele, o caminho para fora do atoleiro é a ousadia: é preciso assumir riscos e não se dobrar a políticas neoliberais.
“Se continuarmos optando por avançar devagar, não chegaremos vivos nas próximas eleições. Eu sou favorável a arriscar, escolher algumas brigas em que tenhamos grandes chances de vitórias e enfrentá-las. A briga principal estava cantada desde o início: a taxa de juros. Nessa questão nos enrolamos em nós mesmos. O presidente Lula bateu publicamente na presidência do Banco Central herdada do governo anterior. A postura do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, foi de não tencionar, mas buscar um acordo. Hoje a gente tem uma maioria [de diretores] indicados por nós no Banco Central e a taxa de juros não cai”, ressaltou.
Pomar trouxe para a conversa a polêmica entrevista concedida pelo ministro Haddad a Mônica Bérgamo, da Folha de São Paulo, na qual afirmou que “a Faria Lima tem razão”. O professor destacou que, se a afirmação for verdadeira, a crise fiscal também é real e a taxa de juros deve mesmo se manter alta. “Se concordamos com isso tudo, perdemos uma briga que podíamos ter ganho. Tínhamos o apoio da sociedade, mas nos desencaminhamos porque parte de nós achava que o melhor caminho era ir devagar, não enfrentar, não comprar briga. Como resultado, estamos perdendo”.
A questão tributária é outra dessas batalhas não enfrentadas pelo governo. Ele destaca que, embora Lula e Haddad defendam a taxação dos ricos, não há caminhos para avanço da proposta sem o enfrentamento com a participação da sociedade civil. “Precisamos que os ricos paguem impostos neste país. Mas como isso vai ser obtido? Negociando com Lira? Com maioria Congressual? Tem que ter um movimento público no país. Já aconteceu antes: a gente comemora a existência da Petrobras, mas ela não veio de graça. Houve um movimento de massas no país, defendendo que o petróleo tinha que ser nosso. Teve disputa política, mobilização, conflito. Tem que negociar nos gabinetes? Sem dúvida. Mas tem que ter mobilização, convocar o país para uma disputa em torno dessa questão”, defendeu.
Os esforços do governo para salvar o novo teto de gastos também foi criticado por Pomar. Ele destaca que, à medida que o governo cede e passa a considerar mexer no BPC, nos pisos da educação e da saúde e no salário-mínimo, os investimentos necessários para fazer avançar um projeto verdadeiramente emancipatório se tornam inviáveis.
Frente ampla
O centrão e parte da direita que compõem a frente ampla que construiu as bases do governo Lula 3 têm um custo. E ele vem se mostrando demasiadamente alto para as esquerdas. Neofascista ou não, todo o espectro das direitas é predominantemente neoliberal, adepto do Estado mínimo, defensor de um modelo centrado na primário exportação, no agronegócio e na ditadura do capital financeiro. Tê-los no governo cria um território arenoso onde o governo tende a escolher caminhos que, sem elas, não escolheria.
“A frente ampla colaborou para a vitória eleitoral, mas ela tem um peso na hora de definir se um governo vai andar para cá ou para lá. Se predominar a ideia que o governo deve se dobrar às políticas neoliberais, ao peso do capital financeiro, da primário exportação, o resultado disso será favorável às direitas. O atual ambiente econômico e social no país hoje fortalece apenas a extrema direita e a direita. Se a gente não altera esse ambiente, se não temos políticas estruturais muito fortes que mudem principalmente a matriz econômica industrial, é uma questão de tempo para as direitas retomarem o governo”, explicou Valter.
Articulação à direita
Não há vácuo no poder e as direitas não assistem paradas a desarticulação nas esquerdas. Pomar apontou uma articulação à direita em curso, com o objetivo de vencer as eleições de 2026. Tarcísio de Freitas, por enquanto, parece ser o nome de consenso. Esta aliança já foi testada, este ano, nas eleições de São Paulo, onde Nunes tem ao seu lado tanto partidos de direita da base do governo de frente ampla do governo Lula 3, quanto de Bolsonaro. do outro lado, Boulos, do PSOL, com total apoio do PT e participação ativa do presidente Lula na campanha, reunindo votos da centro-esquerda, de Tábata Amaral. Hoje inexpressiva, a extrema esquerda colabora pouco para essa soma.
Neste cenário de disputa pelo centro, os resultados do segundo turno serão definitivos: Pomar explica que, em caso de vitória em São Paulo e nas outras 15 capitais onde o PT disputa o executivo, Lula e as esquerdas terão maior margem de manobra para impor suas políticas. Se a derrota vier na maioria dessas capitais, teremos problemas.
“As direitas estão à espreita. Se eles viabilizarem uma candidatura alternativa com potencial de vitória, vão lutar para eleger essa candidatura. Se não viabilizarem, vão optar por reproduzir o cenário de 2022, que é [a participação na frente ampla liderada por Lula, com a], condição de que eles consigam barrar qualquer movimento que o governo faça no sentido do desenvolvimento acelerado, da soberania nacional afirmada etc. Esse é o jogo. Por isso é tão importante o crescimento da esquerda”, defendeu.
Autocrítica
Maior partido de esquerda da América Latina, o PT tem sua parcela de responsabilidade na desarticulação das esquerdas. Profundamente institucionalizado e demasiadamente voltado para a busca por resultados eleitorais, ficou pelo caminho a noção de que, para um partido de esquerda, é preciso conquistar, antes dos votos, o apoio da classe trabalhadora.
“O partido precisa estar mais presente na vida cotidiana da classe trabalhadora, nos locais de moradia, de trabalho, de lazer. Precisa estar presente no dia a dia, nos anos ímpares, não só nos anos de eleição. Essa ideia de que chegaremos nas eleições com um bom resultado em um cenário onde a direita faz um trabalho capilarizado, permanente, cotidiano, é uma ilusão. O problema que enfrentamos nessa eleição não é estritamente eleitoral: é anterior às eleições. E é um problema de toda a esquerda”, defendeu Pomar.
Para ilustrar os impactos, o dirigente lembrou o evento do Dia do Trabalhador, quando o presidente Lula foi recebido por uma plateia vazia. A imagem preocupou, mas não foi suficiente para que as mudanças viessem: “O desastre do 1o de maio nos mostra o quanto perdemos do hábito, como partido, de ter um trabalho militante permanente, de discussão política, de organização, de presença, de mobilização. Se a gente não mexer nisso, todo o resto não será suficiente. Temos outras questões – escolha de candidaturas, política de aliança, linha de campanha, uso do fundo eleitoral – mas este é um problema prévio que faz a diferença no longo prazo. Estamos distantes do dia a dia da maior parte do povo brasileiro e, no lugar disso, a extrema-direita, o crime, as empresas disfarçadas de igreja estão ocupando este espaço”.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Marcelo Camargo/Ag. Brasil, Rovena Rosa/Ag. Brasil, Paulo Pinto/Ag. Brasil, Tania Rego/Ag. Brasil