“O que vemos agora é um movimento de massas que surgiu de uma iniciativa popular, com um tema que antes era considerado impossível, até se tornar inevitável”. A análise é do diretor de Negociações Coletivas do Senge RJ, Felipe Araújo. Para ele, a pauta que dominou as redes nas últimas semanas e levou trabalhadores e trabalhadoras às ruas em 15/11 é produto e sintoma da ausência de movimentos de vanguarda na esquerda organizada, capazes de dialogar com o cotidiano dos trabalhadores e de deixar claro de que lado estão na luta por seus interesses.
O cavalo encilhado que hoje passa à frente da esquerda não nasceu nos círculos que planejam os destinos de grandes partidos ou dos movimentos sociais organizados. O movimento VAT (Vida Além do Trabalho – Pelo fim da escala 6×1) veio do povo e, não menos importante, das redes: Rick Azevedo, um balconista exausto, desabafou em um vídeo no TikTok. O conteúdo sobre a exploração extrema imposta pela escala 6×1 viralizou, alcançando trabalhadores que se identificavam com a esquerda, com a direita ou com nenhum dos dois lados. Nos grupos, eles se justificam: “Não é que eu não me importe, eu só não tenho tempo”. Sem apoio partidário, essas pessoas se organizaram de forma orgânica. A organização tornou-se luta concreta e, na última semana, conquistou o debate público e ganhou espaço nas redes e nas mídias independentes e hegemônicas.
Ao buscar apoio no Congresso Nacional, Rick encontrou abertura no PSOL, por meio do mandato da deputada Erika Hilton. A parlamentar transformou a luta em texto legislativo, iniciando a coleta de assinaturas para a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Por meses, o movimento VAT pressionou parlamentares de esquerda e de direita pelas assinaturas, encontrando em ambos os lados bastante resistência.
Com a eleição de Rick como o vereador mais votado do PSOL e o segundo mais votado da esquerda no Rio de Janeiro, além da repercussão do debate na última semana, o cenário mudou. Sob pressão das massas, a PEC ultrapassou em poucos dias o número de assinaturas que não conseguia reunir desde abril.
Movimento de massas propositivo
O movimento de massas em torno da redução da jornada de trabalho é um marco, segundo Araújo, porque, diferentemente do último grande ato, quando a esquerda colocou o povo nas ruas contra o ‘PL do Estupro’, agora ela está pautando o Congresso.
“No caso da PEC 164/2012, conseguimos fazer a direita e a extrema-direita recuarem. Resistimos a uma proposta deles. Agora, é diferente: a luta pela redução das jornadas tem um potencial gigantesco por quebrar essa dinâmica. Não estamos apenas reagindo, mas propondo mudanças, trazendo o debate público para um tema que atinge a todos nós, trabalhadores”, aponta Araújo.
O impacto dessa abordagem foi sentido pelas ruas do país. No feriado da Proclamação da República, manifestações em 14 capitais e pelo menos 17 cidades do interior mostraram a força de uma proposta que dialoga diretamente com o povo trabalhador e apresenta uma perspectiva real de melhoria de vida. A esquerda, nesse contexto, reencontrou as ruas para propor mudanças e reacender esperanças de um amanhã melhor.
Abandono de pautas históricas
Enquanto parte da esquerda debate se deve guinar ao centro para agradar o eleitorado conservador e aponta a defesa de pautas de populações marginalizadas como possível causa dos maus resultados das urnas nas últimas eleições – o espantalho do “identitarismo” -, um vereador negro e homossexual e uma deputada negra e travesti encabeçam um suspiro bem-vindo para muitos que já não enxergavam “a esquerda na esquerda”.
“Essa não é uma pauta nova. Ela é histórica, mas foi absolutamente abandonada pela esquerda e pelo governo. Só depois que ela se tornou inevitável, foi abraçada de forma organizada pelo nosso campo”, aponta Araújo. Esse abandono talvez explique por que a proposta de Erika Hilton foi rebaixada em comparação com a luta histórica pela jornada de 30 horas semanais.
“Acho uma pena que o texto da PEC tenha ancorado o debate em torno das 36 horas semanais, e não das 30 horas, que é a pauta histórica das esquerdas. O objetivo, obviamente, é reduzir de 44 para 40 horas, o meio termo entre as atuais 44 e as 36 horas defendidas pelo texto. Acontece que não é assim que as coisas funcionam. É preciso ancorar no máximo possível para conseguir reduzir alguma coisa. Nós não temos uma correlação de forças igualitária nessa história. Como o texto está, é possível que seja necessário, para pôr fim à escala, manter as 44 horas semanais”, destaca Felipe.
O presidente Lula ainda não se pronunciou diretamente sobre o tema, mas em seu primeiro discurso no G20 Social, disse que “o neoliberalismo agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias. O G20 precisa discutir uma série de medidas para reduzir o custo de vida e promover jornadas de trabalho mais equilibradas”.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), afirmou que não teve tempo para avaliar o assunto. Já o ministro do Trabalho, Luiz Marinho (PT) declarou que há simpatia pelo tema no Governo e que “a redução da jornada para 40 horas semanais é plenamente possível e saudável”. Marinho apontou, porém, que o tema deve ser tratado em convenções e acordos coletivos. A defesa do negociado sobre o legislado para a redução de jornadas foi motivo de crítica de parte da esquerda, que destacou a inexistência de tais negociações para grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras no mercado hoje.
Reconquista e tramitação
A mobilização que começou no final de 2023 e foi fortalecida agora será essencial para as próximas fases da tramitação da proposta. Antes de chegar ao plenário da Câmara dos Deputados, a PEC precisará passar pela Comissão de Justiça e Cidadania (CCJC), presidida pela deputada Carol de Toni (PL/SC). Atualmente, a comissão tem como prioridades a anistia aos golpistas do 8 de janeiro e propostas para limitar os poderes do Supremo Tribunal Federal.
Após a aprovação na CCJC, a PEC seguirá para a Mesa Diretora da Câmara. Em seguida, caberá a Arthur Lira (PP/AL) criar uma Comissão Especial para o debate e votação do mérito em até 40 sessões. Só então, caso aprovado, o texto será submetido à votação em dois turnos no plenárioonde precisará de 308 votos para aprovação.
O espaço que a mídia hegemônica vem dedicando ao tema, com foco exclusivo nas questões econômicas, de empresas e empregadores, se soma aos obstáculos que movimento enfrentará daqui para frente.
Independente de a PEC ser aprovada ou não, Araújo destaca o caráter pedagógico e mobilizador da luta. “É uma pauta muito importante para diferenciar claramente a esquerda da direita – que está contra a PEC e vai ter que se retorcer para justificar seu apoio ao avanço da proposta. Mas já está claro que, desde o início, é a esquerda que está tocando as mobilizações, por meio de um partido que é constantemente demonizado pela extrema-direita. O povo trabalhador está vendo quem está lutando de fato pela melhoria da sua vida. Isso vai aproximar o trabalhador do campo progressista e dar coragem à esquerda para retomar reivindicações que sempre foram suas. É a luz no fim do túnel. Saindo vitoriosos, esperamos que, de agora até 2026, possamos escalar outras lutas que permitam à esquerda, de fato, voltar a se chamar de esquerda”, conclui.
Rodrigo Mariano/Senge RJ com informações do ICL | Fotos: Tânia Rego/Agência Brasil