Com ampla participação de sindicatos, empresários, técnicos, acadêmicos e gestores públicos, o Fórum da Indústria Naval voltou a se reunir no Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) em novembro. Ferramenta importante para fazer avançar o tema desde a sua criação, em 2022, o fórum organizou o seminário “Retomada da Indústria Naval: em defesa do trabalho decente e da soberania nacional” com três objetivos principais: organizar as ações desenvolvidas junto ao governo, apontar os obstáculos que seguem impedindo a retomada do setor e a produção de um documento que foi apresentado no dia seguinte (14/11), na abertura do plenário da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no G20 Social.
Com um potencial de arrasto tecnológico, produtivo e de geração de empregos que encontra poucos paralelos em toda a indústria, o setor naval reúne diversas categorias e gera alta demanda para os setores de eletroeletrônicos, bens de capital, siderurgia, comércio e serviços. Mas ainda que tenha muito a seu favor, não avança.
“Essa é uma luta de fundamental importância para o nosso país. Nós já tivemos uma indústria naval poderosa e não podemos abrir mão de reconquistá-la. Não faz sentido, em um país com a rede fluvial e a costa que nós temos, com amplas possibilidades de comércio, não sermos capazes de construir nossos navios para a exploração do Pré-sal e para o comércio de longo curso, para a navegação de cabotagem. Precisamos, com urgência, dominar toda a cadeia produtiva de alta tecnologia para a produção de navios, com a garantia de empregos de qualidade e com atenção à transição energética. Tudo isso, com um objetivo que precisamos internalizar: temos que ser donos do nosso próprio país”, defendeu Olímpio Alves dos Santos, presidente do Senge RJ.
“Estamos há quase quatro anos produzindo documentos técnicos. Começamos no Sindicato dos Engenheiros. Entregamos ao presidente Lula, ao governador do Rio, agora, levaremos ao G20. O governo do estado não se move. Os ministérios estão nos ajudando, parte dos empresários, como os representados pelo Sinaval, também. Colocamos tudo no papel, mas não vemos ação”, completou Edson Rocha, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Niterói e diretor da CNM/CUT.
Esforços insuficientes
A retomada da indústria naval brasileira não é só uma promessa de campanha do presidente Lula. Dentro dos planos para a reindustrialização do país, o setor se destaca pelas facilidades que toda a infraestrutura e mão de obra qualificada construídos nos governos Lula 1 e 2 oferecem.
O Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, que toca o plano Nova Indústria Brasil (NIB), deu atenção especial ao tema desde a transição. De lá para cá, uma dezena de grupos de trabalho formados por empresários, sindicalistas e técnicos para endereçar os diferentes aspectos do setor. Este mesmo grupo retomou o Fórum do Setor Naval, iniciativa criada no final do governo Bolsonaro para pensar a reestruturação do setor. Deste trabalho e da articulação do fórum com o parlamento nasceram frentes parlamentares municipais, estaduais e a frente parlamentar nacional sobre o tema.
Petrobras alinhada
Em dado momento, quando ficou claro que não haveria avanço sem uma mudança na lógica da presidência da Petrobras em relação às encomendas feitas pela empresa, Jean Paul Prates caiu e Magda Chambriard assumiu com a missão de colocar as políticas de compras da companhia em sintonia com os planos do governo.
“O governo deu um passo importante com a troca da presidência da Petrobras, mas precisamos avançar mais. Temos visto as atividades acontecerem no Porto do Açu, mas o Rio de Janeiro segue à deriva. Aqui no Rio, quando o presidente Lula lançou o PAC 3, houve o anúncio da construção de 19 plataformas, mas ainda temos entraves dentro da Petrobras que dificultam essa realização. As eleições de 2026 vêm aí. A direita está se organizando. É por isso que precisamos garantir agora os alicerces da indústria naval através de uma política de Estado, não de governo”, defendeu Alessandro Trindade, da CUT.
Boiada segue passando
Os entraves que mantêm grandes estaleiros fechados e impedem o domínio de todo o ciclo do setor – do aço à desmontagem – são heranças do governo Bolsonaro que o governo Lula e as forças de esquerda no parlamento ainda não conseguiram superar.
“O governo anterior deixou muitas pegadinhas, muitos bodes na sala. Eles modificaram muitos regramentos para passar a boiada. Criaram a BR do Mar, que chamo de BR do Mal, permitindo a navegação internacional na cabotagem aqui no Brasil, um crime de lesa pátria. Naquele momento éramos o segundo maior construtor de navios do mundo. Perdemos todas essas construções, os estaleiros foram sucateados. O estaleiro Mauá, hoje fechado, tinha quase dez mil trabalhadores ali. E a Lava Jato destruiu tudo. A Falsa Jato, uma política de poder, foi um ataque à indústria naval brasileira, principalmente à construção naval”, apontou Joacir Pedro, da Federação Única dos Petroleiros (FUP).
BR do Mal e Reforma Tributária
A Lei n 14.301/2022, a BR do Mar, legislação que abriu totalmente o mercado brasileiro para a encomenda de navios no exterior, segue de pé. É ela, em grande parte, a responsável pela cabotagem representar apenas 13% do transporte de cargas do país, enquanto ferrovias transportam 19% e rodovias, 63%. A lei flexibiliza o afretamento de embarcações estrangeiras, desestimula a construção naval no Brasil, além de definir a importação de embarcações estrangeiras com a isenção de uma série de impostos.
Outra ameaça, mais recente, é o artigo 105 do Projeto de Lei da Reforma Tributária (PLP-68/2024), especialmente em seu parágrafo 5. O texto deixa aberto para avaliação a autorização da importação de bens de capital sem o pagamento de impostos. Em seu parágrafo 5, aponta que o benefício se aplica para a aquisição de “veículos autopropulsados pesados, máquinas e equipamentos”. Totalmente vago, o artigo 105 pode piorar muito o cenário da construção de embarcações em estaleiros nacionais, uma vez que os navios são, afinal, veículos autopropulsados pesados.
Também no escopo da Reforma Tributária, no texto aprovado pela Câmara e encaminhado ao Senado, consta a revogação de uma série de benefícios fiscais relacionados ao Registro Especial Brasileiro (REB) para embarcações. O REB, que já havia sido alterado pela Br do Mar, com prejuízos para a indústria nacional no setor, agora pode ver eliminados os benefícios fiscais implementados desde a segunda metade da década de 90, agravando ainda mais o cenário para a indústria naval brasileira.
Diante deste cenário, a CNM/CUT apresentou três emendas aditivas para corrigir as distorções. Elas excluem a possibilidade de importação de veículos autopropulsados pesados e aquáticos do texto e incluem o controle social na aplicação das desonerações tributárias através de um conselho gestor tripartite formado por governo federal, sindicatos e associações do setor, além de sugerir contrapartidas sociais e de emprego quando as desonerações forem aplicadas. No seminário organizado pelo fórum, os dados foram apresentados por Renata Figueiras, do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que assessora a CNM.
Pressão pela soberania
É consenso entre os membros do fórum que, mesmo com a sociedade civil organizada em luta, amplo apoio no governo federal, parlamentares dedicados ao tema e a maior empresa do país como aliada, a retomada da Indústria Naval como vetor de desenvolvimento nacional segue estacionada porque a retomada do funcionamento pleno dos estaleiros brasileiros está inserida em uma disputa internacional: resistimos a uma lógica imposta pelos países do centro do capitalismo, que precisam que o Brasil siga cumprindo um papel de exportador de matérias primas e consumidor de produtos industrializados importados.
Grandes interesses na manutenção deste cenário, bem representados no parlamento, tanto pela ideologia entreguista quanto pelo lobby e pelo financiamento de campanhas, dão o tom da realidade da chamada economia do mar hoje. Estudo recente da UFRJ aponta que quase 50% de sua movimentação corresponde às atividades de óleo e gás. Já as atividades de manufatura e construção naval correspondem a 2,1%: a dependência estrangeira é enorme.
“A gente precisa ambicionar algo para além do que produzimos através dos investimentos no agronegócio. Não vamos conseguir desenvolver nossas forças produtivas se não colocarmos a centralidade da atenção em um projeto de desenvolvimento nacional de desenvolvimento a partir das bases fundamentais que reivindicam toda e qualquer indústria de ponta: engenharia nacional e conteúdo local”, defendeu Adilson Araújo, presidente da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
O sindicalista ressaltou que não há contradição alguma em apoiar o governo do presidente Lula e, ao mesmo tempo, pressioná-lo. “Algumas coisas terão de ser feitas por decreto e Lula precisa decretar. Alguém acredita que vão melhorar a vida dos sindicatos em negociações no congresso? Vamos ter que pressionar. E isso vai demandar muito da nossa capacidade de transformar o tédio em melodia”, finalizou.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Canva Pro, CNM/CUT