A ausência da bandeira brasileira no desfile militar que comemora a vitória do Exército Vermelho sobre a Alemanha nazista simboliza um apagamento histórico sistemático, promovido por academias militares, pelas Forças Armadas e pelos governos brasileiros. Objeto de pesquisa do historiador João Cláudio Platenik Pitilo, do Núcleo de Estudos das Américas da UERJ, a participação do Brasil na Segunda Guerra segue pouco conhecida e, com a morte das últimas testemunhas vivas, corre o risco de jamais ocupar o espaço que merece no imaginário nacional.
Em palestra da edição especial do Soberania em Debate, do projeto SOS Brasil Soberano do Senge RJ, Pitilo – único autor brasileiro a escrever sobre o Exército Vermelho – explicitou a injustiça à qual as Forças Expedicionárias Brasileiras (FEB) e o próprio papel do país na guerra foram submetidos nas últimas décadas.
A marca do Exército brasileiro na derrota do fascismo começou pela própria composição de suas tropas. Durante a guerra contra o horror nazista, todos os exércitos aliados eram segregados por raça: não brancos eram tratados como soldados de segunda linha. O Brasil foi a única exceção. “Além de termos sido o único país latino-americano a enviar tropas para o teatro europeu, carregamos a glória de ser o único exército não segregado”, ressalta Pitilo.
Foi essa tropa miscigenada que obteve o que nenhum exército americano ou europeu conquistara até então: a rendição completa de uma unidade nazista. “As tropas brasileiras atuaram nos Apeninos, na chamada Linha Gótica. Nossa missão era impedir que tropas alemãs na Itália retornassem à Alemanha para reforçar as defesas da capital. Cumprimos com êxito, conquistando a rendição de uma unidade experiente que havia lutado no Cáucaso e vencido muitas batalhas em 1942, na Frente Leste”, lembra o historiador.
Trampolim estratégico e a “segunda linha”
A contribuição brasileira não se limitou ao campo de batalha italiano. O país foi fundamental logística e estrategicamente, atuando em todo o Atlântico. A marinha mercante garantiu o envio à União Soviética do que os soldados chamavam “segunda linha”: latas de carne brasileira que alimentavam a ponta de lança do Exército Vermelho em Moscou. “Essas latas, enviadas pelo lend-lease, eram chamadas ‘segunda frente’ pelos soldados soviéticos”, conta Pitilo. A ação não foi isenta de sacrifícios: o Brasil perdeu 40 navios torpedeados, com mais de 1.100 brasileiros a bordo.

Também foi estratégica a base de Parnamirim (RN) – o “trampolim para a vitória” –, ponto mais próximo da África. Dali, bombardeiros B-25 voavam direto até Marrocos, permitindo aos Aliados desembarcar no Norte da África, vencer o Eixo e lançar a Operação Husky, que tomou a Sicília e levou ao desembarque no continente italiano. “Em 1942, o Brasil era peça chave na guerra: fornecíamos víveres à Inglaterra e aos EUA, e nossa posição garantiu o bloqueio no Atlântico”, destaca o pesquisador.
Impactos do apagamento
A perseguição à memória da FEB traz consequências diretas ao inconsciente coletivo. Pitilo recorda que, no Monumento aos Pracinhas, o comando militar chegou a proibir bandeiras soviéticas nas cerimônias de 8 de Maio. “Quero saber com que autoridade um coronel, em pleno governo Lula, pode vetar a bandeira que levarei. Trata-se de um apagamento sistemático das lutas populares contra o fascismo. A ditadura o acentuou e, mesmo após a redemocratização, não conseguimos restaurar essa memória”, lamenta o professor.
Rodrigo Mariano Fotos: Ministério da Defesa (ascom) / Wikipedia