“Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”. A frase de Lenin foi usada pelo jornalista Marco Fernandes, correspondente do Brasil de Fato em Moscou, para definir o tabuleiro geopolítico na atual quadra histórica. O motivo é claro: as políticas fascistas colocadas em marcha no segundo mandato do presidente Donald Trump, com o objetivo de submeter o mundo aos interesses norte-americanos, vêm surtindo efeito inverso. Países que ocupam o topo do ranking das maiores economias do mundo buscam caminhos de resistência, fortalecendo laços em blocos que se opõem diretamente a Washington.
“Não acho que o tarifaço está colocando o mundo no colo da China, mas está reorganizando as peças do comércio e da diplomacia global. Historiadores, em vinte ou trinta anos, dirão que poucos líderes mundiais fizeram tanto pela multipolaridade quanto Donald Trump. O Brasil é um dos casos exemplares disso, com a reorientação da política externa nos últimos meses”, afirmou Fernandes, no Soberania em Debate de 4 de setembro.
Reaproximações decisivas
O Brasil não está sozinho nessa guinada diplomática. A Índia também chama atenção. Parceiro natural e histórico dos EUA, o país chegou a ser visto como um “cavalo de Troia” dentro do BRICS. Os laços entre os países são profundos, com forte presença indiana em altos cargos de grandes corporações norte-americanas. Mas, como efeito direto das ofensivas de Trump, China e Índia — que tinham uma relação tensa — avançaram no distensionamento, com impactos comerciais imediatos.
A presença de ambos como fundadores do BRICS já vinha promovendo aproximação, mas os últimos encontros diplomáticos solidificaram os laços. Pequim e Nova Délhi voltaram a negociar terras-raras, retomaram voos entre as capitais, facilitaram vistos e reabriram pontos de comércio fronteiriço. Os confrontos de 2020 parecem cada vez mais superados.
“Laços estáveis, previsíveis e construtivos entre Índia e China contribuirão significativamente para a paz e a prosperidade regional e global”, escreveu o primeiro-ministro Narendra Modi em suas redes sociais, após encontro do ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, com o conselheiro de Segurança Nacional indiano, Ajit Doval, em agosto.
Avanços e tensões
Na última semana, a secretária de imprensa da Casa Branca declarou que “os EUA não têm medo de usar recursos militares e econômicos para proteger a liberdade de expressão”. Para alguns, foi uma ameaça direta; para outros, apenas mais uma bravata de Trump. O fato é que, somada às pressões contra o ministro do STF Alexandre de Moraes, feitas pela embaixada norte-americana em Brasília, a declaração acirrou o tensionamento.
O presidente Lula reagiu: “Ele precisa saber que nós acreditamos em nós, que somos um país soberano e donos do nosso nariz”, afirmou em evento público em Roraima, durante a inauguração da interligação do estado ao sistema elétrico nacional.
A posição do Brasil no BRICS reforça sua capacidade de enfrentar pressões externas. Fundado na primeira década deste século, o bloco de economias emergentes passou por altos e baixos, mas, nos últimos meses, ganhou novo impulso diante das ofensivas de Trump.
“Trump está fazendo pelo BRICS mais do que alguns líderes dos próprios países-membros fizeram nos últimos anos. Hoje, há uma agenda econômica poderosa a explorar: recursos naturais, energia, grãos e, sobretudo, a questão financeira e monetária que busca criar alternativas à hegemonia do dólar. Diversas propostas estão sobre a mesa”, destacou Fernandes.
Desafios do bloco
O atual reaquecimento das relações multilaterais enfrenta obstáculos. A instabilidade gerada pelo capitalismo tardio é um dos principais entraves. No Brasil, o golpe que destituiu Dilma Rousseff, seguido pelos governos Temer e Bolsonaro, afastou o BRICS da centralidade da política externa. Com o retorno de Lula, o bloco volta a ganhar protagonismo. Na Índia, até recentemente, Narendra Modi também demonstrava pouco interesse em fortalecer a aliança.
O marco da retomada ocorreu em 2022, com a guerra da Ucrânia e o congelamento das reservas russas. Em 2023, o BRICS foi ampliado, recebendo como membros Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia, Indonésia e Irã. No ano seguinte, na Cúpula de Kazan, Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã foram recepcionados como países parceiros, com direito a participar de discussões, mas sem voto.
Fernandes alerta, porém, que a expansão e a aproximação entre os membros não são suficientes: “Os BRICS ainda estão devendo. Não há grandes conquistas concretas. Se não começarem a entregar resultados importantes nos próximos três anos, corremos o risco de o bloco perder credibilidade e a confiança de seus próprios membros como alternativa à hegemonia ocidental e ao domínio imperialista dos EUA.”
Confira o papo entre os jornalistas Marco Fernandes e Beth Costa no Soberania em Debate e conheça as propostas, os planos e os desafios que estão sobre a mesa do BRICS — iniciativas difíceis de concretizar, mas com potencial de transformar o rumo da história.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra e a redação, de Rodrigo Mariano.
As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.
Foto: Ricardo Stuckert