Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft. Juntas, as empresas formam a GAFAM, acrônimo usado para denominar um grupo de corporações que têm, hoje, poderes nunca antes vistos nas mãos de empresas na história da humanidade. Em um tempo em que virtual e real já não se separam de fato, é praticamente impossível, em 2025, viver sem gerar lucro para elas — se não diretamente, via contratação de serviços e publicidade, indiretamente, cedendo dados que serão utilizados para calibrar os algoritmos que decidem o que vemos e o que não vemos nas telas de celulares, tablets e computadores em todo o mundo.
No último Soberania em Debate de setembro, a jornalista Beth Costa recebeu o cientista social Sérgio Amadeu, do Comitê Científico Deliberativo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibernética, para tratar do assunto que, agora, vai além das redes sociais e da governança algorítmica e alcança a inteligência artificial, aumentando exponencialmente o poder das big techs.
Detentoras de dados de mais de 3 bilhões de pessoas, as GAFAM são o maior destino de verbas publicitárias do planeta e, em 2019, alcançavam um faturamento acima da metade do PIB brasileiro. Os lucros superam em muito o PIB de diversos países. Em um mundo manchado pelo recrudescimento de ideologias de extrema-direita, o encontro dessa massa de dados e poder computacional com a indústria bélica foi quase natural.
Os trabalhadores resistiram e chegaram a provocar recuos das diretorias, cancelando projetos que violavam a privacidade com ferramentas que, até bem pouco tempo, só eram imagináveis em universos de ficção científica. O primeiro deles foi o Projeto Maven, que, por meio de imagens de drones de altíssima resolução, permitia identificar pessoas no solo, sem autorização. Os sistemas de aprendizado profundo, principalmente as redes neurais, ajudavam na identificação.
“Os trabalhadores começaram a perceber que estavam colaborando com um sistema de vigilância e não queriam fazer parte daquele esforço para mapear pessoas e torná-las alvos. Mas não foi suficiente. O Google recua num primeiro momento, mas depois surgem outros projetos que integram a Amazon, a Palantir e outras grandes corporações de tecnologia, a ponto de surgir um projeto de aumento da capacidade militar das tropas em combate, ganho só pela Microsoft”, conta Amadeu, que também é professor da Universidade Federal do ABC.
Dados a serviço da morte
O governo Trump fez investimentos pesados na parceria entre as big techs e o Ministério da Guerra — antigo Ministério da Defesa, recém-renomeado por Trump. Com um vultoso investimento de 36 bilhões de dólares, Oracle, Amazon, Microsoft e Google passaram a oferecer sua infraestrutura e serviços para frentes de combate. Parece, mas não é conspiração: as contratações estão no portal de compras do Ministério da Guerra.
O complexo militar-industrial norte-americano já era caracterizado pelas parcerias do Exército com empresas bélicas. Hoje, com guerras baseadas em dados, o Exército precisaria reproduzir a infraestrutura das big techs dentro das Forças Armadas. Somando à equação a doutrina neoliberal, que coloca o Estado cada vez mais refém da iniciativa privada, o casamento se deu e as big techs entraram no Pentágono.

“Essas empresas participaram das ações em Gaza e os trabalhadores do Google, Amazon e Microsoft chegaram a criar o movimento ‘No Tech for Apartheid’. Com todos os dados da população de Gaza, eles criam dois programas para a guerra: o Lavender, de detecção de alvos, e o Where is Daddy?, capaz de atingir alvos fora de combate, na casa do indivíduo, quando ele está em família ou com vizinhos. Não é uma guerra na linha de combate. Eles têm quem deve ser eliminado mesmo antes do conflito, usando dados geográficos, obtidos por bancos, empresas, drones”, aponta o professor.
As relações promíscuas entre as big techs e as forças imperialistas alcançam o ápice com o nascimento da Palantir, uma empresa que, desde a fundação, foi pensada como de confiança das Forças Armadas norte-americanas. Com investimentos da CIA, ela é dirigida por Peter Thiel, fundador do PayPal, ex-sócio de Elon Musk e um dos incentivadores do Facebook. O alemão é um dos principais líderes da extrema-direita norte-americana, financiador de grupos supremacistas. Para aumentar a capilaridade entre os escritórios no Vale do Silício e as Forças Armadas, diretores das big techs foram nomeados coronéis das Forças Armadas norte-americanas. Diretorias de Defesa foram criadas dentro dos organogramas.
Poder político além das urnas
Nos Estados Unidos, que rolam ladeira abaixo no autoritarismo, o apoio das big techs ao governo Trump já é de conhecimento público. Sua interferência nas eleições será decidida pelo presidente norte-americano. A boa notícia é que nossas urnas estão seguras, uma vez que o sistema não tem conexão com a rede, o software pode ser auditado e tem código aberto. A má notícia é que as máquinas de totalização de votos utilizam data centers norte-americanos e, caso haja interesse, é possível causar dificuldades.
Para além das eleições, a soberania nacional sobre os dados dos brasileiros é um problema até então sem solução. Sérgio aponta que o grau de dependência, em nível institucional e operacional, do Brasil é alto. A Previdência Social, o Fundo de Garantia, o Bolsa Família, o SUS e muitos outros são processados por serviços da Microsoft, Amazon e Oracle.
“Dá pra transferir esses dados de hoje para amanhã? Não dá. Mas quando vamos começar esse processo? Porque, diferente do que dizem as big techs, o Brasil é capaz de desenvolver projetos que, por exemplo, retirem os dados das universidades do exterior e os armazenem aqui, em data centers construídos com engenharia brasileira, com baixo impacto ambiental, federados, sob o controle das comissões de ética das universidades e dos professores-pesquisadores. Não é necessário um data center por universidade, mas podem existir cinco, seis, um espelhando o outro, que guardem os dados das pesquisas, dos repositórios brasileiros, dos streamings que são feitos, da caixa postal, que é fundamental, e que fiquem no Brasil sob o controle de brasileiros. Escolher contratar a Amazon é trocar a nossa soberania, nossa capacidade, nossa inventividade por um valor que nem é tão baixo e, a médio prazo, ficar subordinado aos interesses dessas empresas e dos EUA”, alerta o professor.
O contexto político traz complexidades ao tema, na medida em que as diretorias das empresas estão apinhadas de militantes públicos da extrema-direita e grandes financiadores de seu projeto para o mundo. Enquanto isso, ministros brasileiros trocam mensagens no inbox — dados estratégicos que passam por empresas comprometidas com uma ideologia de extrema-direita, que é justamente a de domínio global.
O Brasil tem empresas nacionais que gerenciam os nossos dados, mas, durante o governo Bolsonaro, elas passaram a ser revendedoras de serviços de big techs sem licitação. Com a eleição de Lula, a política mudou. As big techs reagiram com o que o capitalismo faz de melhor: criaram um novo produto. A Nuvem Soberana é um serviço que instala data centers dentro da Dataprev e do Serpro, prometendo controle exclusivo dos órgãos contratantes e submetendo os dados à legislação nacional. A subordinação tecnológica e jurídica — a lei norte-americana define que data centers de suas empresas respondem à Justiça dos EUA, não aos países onde estão instaladas — permanece ameaçadora.
Por uma política pública de soberania digital
Para uma agenda mínima de avanço na soberania digital no Brasil, o professor sugere três eixos: a criação de uma política nacional de dados que classifique o que pode e o que não pode sair do país; data centers federados nas universidades, com baixo impacto ambiental, para repositórios, comunicação e serviços acadêmicos; e a reestruturação tecnológica das estatais, Serpro e Dataprev, com laboratórios de P&D em IA em parceria com universidades, usando o poder de compra do Estado para fomentar soluções nacionais e reduzir a dependência crítica.
O plano, destaca o professor, não é utópico, mas perfeitamente executável: “O país é grande, é verdade, mas dá pra fazer. Temos pessoal competente, gente capacitada nas universidades. Há gente desiludida nas universidades porque está trabalhando para as big techs e não encontra outros espaços disponíveis”, finaliza.
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O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra.
As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.