O Brasil se consolidou, nas últimas décadas, como o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. O uso intensivo dessas substâncias — muitas delas proibidas em diversos países — revela não apenas um problema ambiental e de saúde pública, mas também uma disputa estrutural entre dois modelos de agricultura e de país.
De um lado está o agronegócio voltado para a exportação de commodities, dependente de monocultivos, fertilizantes sintéticos e químicos cada vez mais potentes; de outro, a agricultura familiar, indígena, quilombola e camponesa, responsável por grande parte dos alimentos que chegam à mesa das brasileiras e dos brasileiros. A forma como o Estado brasileiro financia e normatiza esses modelos determina seus impactos sociais.
A disputa entre esses modelos foi destaque no Soberania em Debate no final de outubro, com reapresentação em novembro, durante a COP 30. Alan Tygel, coordenador da Campanha Permanente Contra Agrotóxicos e pela Vida falou sobre o modelo de agricultura baseado em venenos e subsídios públicos que há décadas norteia o setor no Brasil.
A expansão do pacote tecnológico da chamada Revolução Verde — máquinas de grande porte, sementes híbridas e químicos produzidos por transnacionais — moldou a agricultura brasileira desde os anos 1960. Ela chega com a ideia de aumentar a produtividade e é aplicada na produção de commodities para a exportação, dos grandes monocultivos. “Essa produção impulsionada vai para as bolsas de valores, para o mercado financeiro, não para a mesa dos brasileiros”, aponta Tygel.
Nos anos 1990 e 2000, com a Lei Kandir e a aposta na exportação em larga escala, o país aprofundou um modelo que beneficia poucos: grandes proprietários e corporações estrangeiras. Nasce, então, o que conhecemos hoje como o agronegócio.
Apesar do discurso de produtividade, esse modelo revela contradições. Há 30 anos, 1 kg de agrotóxico produzia cerca de 23 sacas de soja. Hoje, produz apenas 7 sacas, obrigando produtores a triplicar o uso de venenos para manter níveis semelhantes de produção. O resultado é um ciclo em que recursos públicos — via isenções fiscais, plano safra e incentivos — são transferidos para as contas de gigantes como Bayer, Syngenta e BASF.
“Com foco na produção de commodities para bolsa de valores que vão ser transformados em ração animal, em óleos, em em comida eh industrializada, o agronegócio tem um modelo antagônico ao da agricultura familiar, que de fato bota o arroz, o feijão, a mandioca, as verduras na mesa dos brasileiros todos os dias. E quando falamos de agrotóxicos, estamos falando dessa disputa entre modelos”, aponta Tygel.
Neste cenário, a contradição se desenha: o Brasil busca o protagonismo nas políticas para as mudanças climáticas, energéticas e de modelo, mas segue flexibilizando o uso de agrotóxicos e sua fiscalização.
A fragilização da regulação
A lei brasileira de agrotóxicos de 1989 estabelecia um equilíbrio entre Agricultura, Saúde e Meio Ambiente. Pensada Se Anvisa ou Ibama indicassem risco grave, um produto poderia ser vetado. Mas a legislação aprovada em 2023 mudou esse arranjo: o Ministério da Agricultura passou a ter predominância, enquanto Saúde e Meio Ambiente tornaram-se apenas consultivos. Isso enfraqueceu a capacidade de veto e acelerou liberações.
“Se antes saúde e meio ambiente podiam apontar que determinado agrotóxico era perigoso demais, que ficava para sempre na água, ele podia ser banido. Hoje, o galinheiro está nas mãos das raposas e estamos acompanhando o aumento nos registros, não só de agrotóxicos, mas também no consumo”, alerta o ativista.
Outro instrumento enfraquecido é o receituário agronômico, obrigatório para compra de agrotóxicos, receitado por engenheiros agrônomos e fiscalizado pelos Conselhos Regionais. Segundo Tygel, na prática, o sistema está descontrolado: estados sem dados consolidados, receitas emitidas sem visita técnica e ausência de transparência impedem qualquer diagnóstico preciso sobre riscos regionais.
“As políticas públicas precisam desses dados, mas os conselhos regionais não têm colaborado com a transparência. que é um direito da sociedade”.
Pulverização aérea e drones: riscos ampliados
Enquanto o debate avança, a prática no campo se torna mais perigosa. A pulverização aérea — historicamente contestada — ganhou uma nova ferramenta: os drones.
Segundo informações apresentadas no debate, o próprio Ministério da Agricultura admite não ter capacidade de fiscalizar essa aplicação. Os drones operam sem ruído ou rastro, permitindo inclusive ataques a propriedades vizinhas em conflitos locais. Sem monitoramento, o risco de contaminação humana e ambiental cresce de forma explosiva.
A orientação é que irregularidades sejam denunciadas aos órgãos agropecuários estaduais, que têm canais específicos para esse tipo de ocorrência.
Os efeitos dos agrotóxicos atingem trabalhadores, comunidades rurais e consumidores urbanos. A exposição ocorre em toda a cadeia: fabricação, transporte, aplicação, deriva para escolas e moradias, além da ingestão por alimentos e água contaminados.
Há dois tipos de impacto: as intoxicações agudas, que incluem dores de cabeça, tonturas, problemas respiratórios, alergias, desmaios e até mortes em casos extremos; e os efeitos crônicos, que surgem anos depois, como câncer, desregulação hormonal, abortos espontâneos, má-formações e problemas que afetam gerações futuras, devido à ação mutagênica e teratogênica de muitos agrotóxicos.
Estudos apontam que 60% dos agrotóxicos mais usados no Brasil são cancerígenos, desreguladores endócrinos ou teratogênicos, um custo imenso para famílias e para o Sistema Único de Saúde.
Caminhos para uma transição necessária
A transição para um modelo agroecológico é viável e passa por diversos pilares: reforma agrária e demarcação de terras indígenas e quilombolas, desenvolvimento de maquinário apropriado para agricultura familiar, produção de bioinsumos que substituam os agrotóxicos, assistência técnica agroecológica baseada em princípios da educação popular, agroindústrias cooperativas para agregar valor à produção e fortalecimento de políticas públicas de comercialização como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
Entre as conquistas recentes está a assinatura do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara) pelo presidente Lula. “É uma sinalização fundamental de que o governo reconhece que o Brasil usa muito veneno e precisa reduzir. Agora lutamos para que seja implementado”, declarou o engenheiro. A campanha também trabalha pela criação de zonas livres de agrotóxicos, onde a pulverização seja proibida e a agroecologia possa se desenvolver.
A Campanha Contra os Agrotóxicos se prepara para participar da Cúpula dos Povos, evento paralelo à COP 30 que acontecerá em Belém a partir de 10 de novembro. Tygel criticou o fato de o espaço oficial de agricultura na COP, chamado Agrizone, ser patrocinado por Nestlé e Bayer. “Na Cúpula dos Povos vamos reunir militantes de organizações do mundo inteiro que não apenas discutem, mas implementam na prática o modelo de agricultura e sociedade que sonhamos”, afirmou.
A campanha mantém uma página com orientações sobre como denunciar o uso irregular de agrotóxicos, incluindo pulverização aérea e por drones. As informações estão disponíveis em contraosagrotoxicos.org, na seção “como denunciar”, com contatos dos órgãos agropecuários de cada estado.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra e redação de Rodrigo Mariano. As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.
Foto: Oliver/Mídia Ninja | Reprodução Campanha Permanente contra Agrotóxicos e pela Vida