No campo teórico, o assunto parece mais complicado do que realmente é: os estudos em políticas públicas de segurança estão avançados. As formações necessárias já são oferecidas, os protocolos existem e são ensinados pelas academias de polícia. Leis e decisões da Suprema Corte já definem as práticas que devem nortear a atuação dos poderes armados. Se essas diretrizes fossem seguidas, as forças policiais já pautariam suas ações esforços na proteção dos cidadãos. Na prática, no entanto, a falta de monitoramento e controle perpetuam uma atuação antidemocrática – um eco de um tempo em que as polícias eram usadas como um braço do regime ditatorial.
Segundo o sociólogo Daniel Veloso Hirata, professor do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (GSO-UFF), é justamente por ser rasa que a questão é tão grave. As falhas, aponta o especialista, se concentram nas ferramentas de controle que deveriam garantir que a lei orientasse de fato a ação policial.
“Temos órgãos de controle interno (as corregedorias), externos (o Ministério Público) e, teoricamente, o controle político, representado pelos governos estaduais. Por um lado, as corregedorias costumam atuar de forma complacente, no coleguismo. O Ministério Público é inoperante ou está de acordo com a atuação das polícias: três pesquisas com 10 anos de diferença mostram que mais de 90% dos casos envolvendo mortes pela força armada estadual são arquivadas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Já os governadores, na maior parte das vezes, chancelam as ações – mesmo as mais violentas – em uma negociação para a fidelização das forças policiais”. E é assim que, um após outro, os governos acabam tutelados pelas polícias e perdem seu controle sobre elas, explica Hirata.
O caso do Rio de Janeiro, que acumula incursões altamente letais das forças policiais ao longo das décadas, é um exemplo perfeito para o problema colocado pelo professor. O Estado tem uma série de medidas de mitigação da violência voltadas às operações policiais definidas pelo Supremo Tribunal Federal, como a proibição de operações noturnas, a priorização de investigações de crianças e adolescentes, proteção de perímetros escolares e unidades de saúde e a presença obrigatória de ambulâncias. As determinações da suprema corte brasileira apenas não são cumpridas. E nada acontece por isso. “Não temos obediência ao poder político, nem prestação de contas quanto ao que é realizado”, aponta Hirata.
Fragilidade democrática
A explícita dificuldade dos Poderes da República na relação com as Forças Armadas se repete em nível estadual. Em ambos os casos, o desafio de trazer os poderes armados para uma lógica democrática segue sendo o obstáculo, até agora, intransponível, tanto para as polícias militares, quanto para as civis. Em ambos os casos, a saída é garantir que a lei deixe de ser uma barreira contra a atuação das polícias para a eliminação de um inimigo e se torne um vetor de condução da sua atuação.
“Temos que nos voltar para o entendimento de que as polícias devem agir nos limites estritos da lei, atuar de forma constitucional. Esse é o ponto fundamental para conceber todo o funcionamento dessas forças policiais. Parece óbvio, mas não é o que ocorre sempre e isso está nos fundamentos dos nossos problemas mais profundos. O controle democrático da atividade policial passa por uma outorga pactuada do uso da força. Não é uma entrega à arbitrariedade. Tem que ter respaldo legal”, ressalta.
Ganhando força no debate público, a desmilitarização das polícias militares também foi tratada por Hirata na live do SOS Brasil Soberano de 31 de agosto. Segundo ele, do ponto de vista da institucionalidade democrática, não é adequado que as polícias sejam forças auxiliares do Exército. “A militarização não é só o vínculo institucional e legal da polícia com as Forças Armadas, mas uma concepção do que é e como deve ser feito o policiamento: uma estrutura tecnológica, financeira e humana voltada para o confronto. Será que é desta maneira que devemos pensar a atuação das forças policiais?”, provoca Hirata.
Medidas urgentes
Ainda que não avancem no Brasil, experiências de outros países apontam práticas que costumam ter bom resultado no trabalho de aproximar as forças policiais de forças democráticas que deveriam controlá-la. Entre as medidas que poderiam mudar o cenário nacional, Hirata coloca a criação de Comissões Independentes de Supervisão da Atividade Policial. Presente em 40% das cidades dos Estados Unidos, essas comissões fazem o acompanhamento das atividades policiais através de metas e indicadores objetivamente estabelecidos, propondo mudanças para políticas públicas de segurança e atuando, com base em dados dos governos estaduais, de forma absolutamente transparente, prestando contas à toda a sociedade civil.
“No Brasil, a proposta surge de um acúmulo de conhecimentos e experiências nascidas da mobilização da sociedade civil do Rio nas últimas décadas. Ela aparece em diferentes momentos. Está na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ABPF) das Favelas, que corre no STF desde 2019 e no âmbito do grupo de trabalho do Observatório da Polícia Cidadã do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, conta Hirata. Segundo revisões sistemáticas baseadas em evidências, as comissões são altamente eficientes para o controle da violência letal das forças policiais.
Para tirar o plano do papel, o especialista aponta que o caminho é a mobilização: a instalação das comissões precisa ser política e só costuma avançar sob forte pressão social. “Ao longo do tempo, a área da Segurança Pública só avançou quando a sociedade civil se mobilizou e exerceu pressão sobre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. É pela pressão dos que mais sofrem com a violência policial que avançamos. Temos organizações de direitos humanos, universidades, movimentos de favelas e de familiares de vítimas. Uma sociedade civil qualificada, preparada e pronta para assumir essa tarefa. Essa seria uma medida extremamente importante e colocaria a sociedade civil como protagonista do controle democrático da atividade policial”, finalizou.
Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil