“Negociações coletivas transnacionais e Acordos Marco Globais (AMG)”, ou seja, aqueles acordos firmados entre entidades sindicais internacionais de trabalhadores e empresas estrangeiras com efeitos que alcançam os diferentes países em que a corporação atue, ganham cada vez mais relevância dentro das estratégias para garantir direitos. A avaliação é da advogada Daniele Gabrich Gueiros (no alto, à dir.), que defendeu tese de doutorado sobre o tema, no Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, da Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ela, os AMGs são uma ferramenta importante e podem contribuir para resgatar potência e autonomia sindical atingidas pela Reforma Trabalhista.
“Especificamente no caso brasileiro, interessa à análise refletir se tais instrumentos estabelecem uma diretriz ou um potencial espaço para recuperação da autonomia coletiva dos trabalhadores, fragilizada no plano interno pelas alterações normativas que favorecem a fragmentação das instâncias negociais, com reformas que tencionam direitos e são orientadas para enfraquecer os sindicatos”, explica Daniele, que assessora o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), a Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e outras entidades de trabalhadores.
“Estamos vivendo um momento bastante difícil para a organização coletiva e sindical, com uma Reforma Trabalhista de orientação claramente antissindical. atomização das negociações coletivas, vedação da ultratividade, entre outras medidas”, avalia a advogada. “Por isso é importante buscar ferramentas que assegurem direitos, inclusive de liberdade sindical.”
A tese “Negociações Coletivas Transnacionais e Acordos Marco Globais:experiências de reações sindicais à remercantilização do trabalho”, resultante das pesquisas de doutorado realizadas pela autora no PPGD da UFRJ, aprovada com louvor, analisa especificamente AMGs firmados pela IndustriALL Global Union, sindicato global fundado em 2012, que representa 50 milhões de trabalhadores em 140 países, nos setores de mineração, energia e manufatura. Senge RJ e Fisenge, por exemplo, integram a representação internacional.
De acordo com a síntese da autora, a tese de doutorado “discute os limites e as possibilidades de os AMGs contribuírem para o debate público sobre direitos sociais e examina experiências de ação sindical, sobretudo em negociações coletivas transnacionais, voltadas à (re)humanização das relações de trabalho e à preservação e ampliação dos direitos dos trabalhadores.”
O estudo se concentra em três casos paradigmáticos (AMGs firmados entre IndustriALL com Siemens Gamesa, EDF e Rhodia Solvay), selecionados pelo fato de esses acordos se estenderem ao Brasil e às cadeias produtivas locais. E também por contarem com previsão de dever de vigilância, meios de monitoramento da efetividade dos direitos assegurados, e formas de equacionamento de conflitos complementares às locais, da visão das lideranças sindicais entrevistadas para a tese. Buscou responder se, da perspectiva dos movimentos sindicais, é relevante negociar acordos dessa natureza.
Daniele lembra que a italiana Enel, presente no setor elétrico brasileiro, é uma das empresas que já firmou Acordo Marco Global com a IndustriALL Global Union. Os AMGs abrangem normas que a empresa se compromete a cumprir, referentes a Direitos Humanos, meio ambiente e convenções internacionais – mesmo as que o Brasil não ratificou.
Segundo a advogada, a sistematização mostrou que “a negociação coletiva no âmbito transnacional é um espaço de disputa emergente para a atuação dos sindicatos na reorganização produtiva e no enfrentamento aos graves problemas decorrentes do avanço das políticas neoliberais, e a da atuação das empresas transnacionais, sobretudo aos desafios de responsabilização de tais empresas às violações de direitos humanos, aos danos ao meio ambiente por toda a cadeia produtiva”. As experiências dos AMGs, diz, “podem ser compreendidas como reações sindicais à reconfiguração do capital em torno das cadeias globais de valor e como práticas de resistência, ao afirmar a voz coletiva dos trabalhadores por intermédio de suas organizações na nova ordem global e a luta permanente para a preservação e conquista de direitos humanos.”
Alavanca para ampliar direitos
O trabalho envolveu pesquisa empírica, análise documental, participação em eventos sindicais e entrevistas com atores sindicais, com escuta das narrativas dos sindicalistas sobre os AMGs. Entre as conclusões da advogada, ela reconhece que os acordos podem ser ferramentas para potencializar relações sindicais, mas a participação e efetivação das normas negociadas para os trabalhadores terceirizados permanece uma questão relevante a ser resolvida. “É um desafio. Eles não participam como protagonistas das negociações dos AMGs, embora nos casos estudados, se tenha um ‘plano de vigilância’ [para observar o cumprimento dos compromissos nos países] para os terceirizados. Até porque no Brasil a representação sindical destes trabalhadores costuma não ser a mesma dos trabalhadores das empresas tomadoras de serviços; eles ficam em geral vinculados a sindicato diversos, sofrem a fragmentação e a pulverização da representação.”
Atualmente, há cerca de 300 acordos globais, a maior parte com corporações transnacionais com sede na Europa. Daniele conta que o primeiro AMG foi firmado pela União dos Trabalhadores de Alimentação (UITA) com a Danone. Inicialmente, enfatizava muito as questões de segurança e saúde do trabalho. Mas os demais passaram a incorporar direitos humanos reconhecidos em declarações de direitos, convenções e tratados internacionais, inclusive a Declaração de Direitos Fundamentais no Trabalho, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Os AMGs não substituem os Acordos Coletivos de Trabalho (ACTs) na negociação local, ressalta a advogada. “Os acordos globais são complementares, alavancas de outras reivindicações”, diz. Além disso, ela destaca que estender aos diferentes países os direitos em vigor nas sedes não significa deixar de lutar pela institucionalização de normas e políticas públicas vinculantes, que responsabilizem empresas transnacionais por violações de direitos humanos ou questões relacionados a meio ambiente.
“O Acordo Marco Global é uma ferramenta nova, recente, mas que pode ser assimilada pelo ordenamento jurídico brasileiro, de maneira análoga a um regulamento interno da empresa”, afirma. Para Daniele, esse tipo de negociação abre mais um espaço de fortalecimento e conquista de direitos, inclusive de liberdade sindical, e pode potencializar as redes sindicais. “Está inserida na ambivalência do dreito do trabalho no capitalismo, sem pretensão de ruptura, voltada a proteger as relações de trabalho, e particularmente importante à medida que as normas de proteção vêm sendo flexibilizadas ou suprimidas, para aumentar a mercantilização da vida, do trabalho e das pessoas.”
>Em breve estará disponível a Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, sob orientação da profª. drª. Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva.
Foto: A defesa foi realizada em plataforma Zoom e contou, entre outros, com a presença do presidente do Senge RJ, Olímpio Alves dos Santos (na foto, no alto, à esq.)