Antonio Gerson F. de Carvalho*
Não concordo com a famosa frase atribuída popularmente ao general Charles de Gaulle, que o Brasil não é um país sério, mas não há dúvida de que muitos brasileiros não são sérios. Vejamos o que acontece com os interessados no setor energético nacional, que agora debatem o Projeto de Lei 6407/13, chamado de “Nova Lei do Gás”, em tramitação na Câmara dos Deputados.
Parece piada, mas, infelizmente, não é. Esta é a “Terceira Nova Lei do Gás” discutida no Congresso Nacional. A primeira foi apresentada após a aprovação da PEC nº 5, em março de 1995, que alterou o Artigo 25, §2º, que havia sido incluído na Revisão Constitucional de outubro de 1988, e que deu aos estados o poder decisório sobre a distribuição de gás canalizado. A PEC permitiu que os serviços fossem prestados diretamente pelo Estado ou concedidos à iniciativa privada, motivando a criação de várias empresas estaduais, muitas em associação com setor privado. Além disso, gerou a expectativa de privatizações, o que motivou a proposta do deputado federal Inácio Arruda (PCdoB/PE), de dezembro de 1996, para uma legislação complementar, com o Projeto de Lei N°1827/1996 – Lei do Gás, apresentado na Câmara dos Deputados mas que permaneceu “engavetado”, até ser definitivamente abandonado.
As grandes descobertas de reservas de petróleo e gás natural na Bacia de Campos, a conclusão do gasoduto RJ-SP (final de 1988), e a entrada em operação do gasoduto Bolívia-Brasil (segundo semestre de 1999) impulsionaram o crescimento na utilização do gás no Brasil, tornando este processo de evolução irreversível, apesar das muitas dificuldades enfrentadas.
Quando Fernando Henrique assume a Presidência da República (1995), ele anuncia, de imediato, a interrupção dos investimentos da União no setor elétrico, para iniciar o processo de privatizações e de incentivos ao setor privado. Primeiro com o leilão de distribuidoras de energia elétrica e de gás canalizado do RJ e de SP, depois com a Emenda Constitucional nº 9, de novembro de 1995, que aprovou a quebra do monopólio da Petrobras no setor de petróleo e gás, e, em seguida, com a Lei nº 9.478, de agosto de 1997, conhecida como Lei do Petróleo, que regulamentou o setor.
Pouco tempo depois, sem a construção de novas usinas hidrelétricas e diante do quadro de escassez de chuvas no país, veio a crise energética e a necessidade de racionamento, fazendo o governo optar por criar facilidades para utilização de gás natural em grande escala na geração elétrica. Em fevereiro de 2000, o governo lança o Programa Prioritário de Termelétricas, adotando subsídio no preço do gás e disponibilizando recursos para financiar a construção de usinas térmicas, com garantia da compra da eletricidade gerada. Naquele ano, 30% da energia gerada por termelétricas no Brasil era proveniente do carvão e somente 6% resultado da queima de gás natural, o segmento industrial era responsável por 65% do consumo total de gás canalizado, e o gás natural veicular-GNV, junto com a geração elétrica, graças aos grandes incentivos criados, começavam a ganhar importância.
No entanto, o planejamento do governo fracassa e o racionamento de energia elétrica dura até 2002, e, como não havia gás natural suficiente para suprir, ao mesmo tempo, as termelétricas instaladas e os demais segmentos consumidores, veio o racionamento do gás em 2006. Foi necessário um grande esforço da Petrobras para incrementar a produção nacional, garantir as importações crescentes do gás boliviano e dar início aos projetos para importação de gás natural liquefeito-GNL (efetivados em 2008). Neste momento, o consumo de gás na geração elétrica já superava o volume utilizado em todo o segmento industrial e, segundo auditoria divulgada em 2009 pelo Tribunal de Contas da União, o racionamento teve um custo direto de R$ 45,2 bilhões para consumidores e contribuintes, também causando grandes prejuízos à Petrobras nos contratos com as usinas termelétricas. É importante o relato desses fatos para que sejam conhecidos e tomadas todas as precauções para que o país não repita erros tão grosseiros.
Em 2007, os esforços, elevados investimentos e o domínio tecnológico da Petrobras resultam na descoberta de grandes reservas de petróleo e gás natural em extensa camada do pré-sal, na margem continental brasileira, provocando euforia diante da possibilidade de aumentar bastante a produção nacional. Com o alto potencial e o baixo risco exploratório do pré-sal, veio a necessidade de mudança da legislação, inicialmente com a aprovação da Lei Nº 11.909, de março de 2009, conhecida como Lei do Gás – a “Segunda Lei do Gás”-, que, segundo opiniões de algumas entidades e interessados no setor, era necessária “para aumentar a competição e estimular a entrada de novos agentes”, principalmente no transporte do gás natural, que passou a ser permitido nos regimes de concessão (precedido de licitação) ou de autorização.
O Governo Federal complementou a Lei 11.909 com o Decreto 7.832 (dezembro/2010), definindo as bases para expansão do mercado, principalmente com o Plano de Expansão da Malha de Transporte, que instituiu o planejamento de curto, médio e longo prazos dos investimentos, para ampliação da malha de dutos de transporte de gás natural necessários no país. O fato é que a “Nova Lei do Gás” (a segunda), que diziam ser a solução para o setor, porque o tornaria potencialmente atrativo aos empreendedores, acabou contribuindo sim, para o seu “engessamento”, reduzindo o interesse da Petrobras, por conta das limitações que lhe foram impostas, sem conseguir atrair o setor privado para investir na necessária expansão da infraestrutura de transporte de gás natural. Por ausência de novos gasodutos de escoamento da produção para o continente, para seu processamento nas UPGN`s e disponibilização do gás nos pontos de entrega, o volume destinado à reinjeção, para manter a pressão nos reservatórios e aumentar a produção de óleo, chegou próximo daquele que o país importava da Bolívia.
A lei em vigor permite os regimes de concessão ou de autorização para exploração do serviço de transporte de gás natural e também permite o acesso de terceiros. Mas a ampliação da malha de gasodutos envolve recursos significativos, com retorno de longo prazo e com algum risco, motivos utilizados para justificar o desinteresse apontado pelo setor privado, que, ao que tudo indica, quer estar “na chuva sem se molhar”, especialmente enquanto durar a crise econômica mundial.
Não satisfeitos, trazem agora o projeto de lei PL 6407/13, da “NOVA LEI DO GÁS” (ou será nova, da nova, da nova?), em tramitação na Câmara dos Deputados, que poderá substituir a lei de 2009, fracassada nos seus objetivos declarados. Ocorre que o claro objetivo do Projeto é criar condições ainda mais favoráveis para instalação de novas térmicas para geração de uma energia que será cada vez mais cara, na medida em que sua participação no total da energia necessária será crescente, e reduzindo aquela gerada pelas usinas hidroelétricas, sabidamente mais barata. Ou seja, punindo, principalmente, a população, o consumidor residencial e o comercial.
Alguns defendem até a utilização de térmicas inflexíveis com garantia de demanda firme, um grande erro, pois é insano pensar o desenvolvimento do setor de energia no Brasil intensificando a geração térmica, com subsídios e distorções que castigam seu custo. Térmicas inflexíveis significam custos permanentes maiores e também inflexíveis. A utilização das termelétricas flexíveis hoje existentes ou que ainda venham a ser construídas, prioritariamente em regiões que auxiliem a interiorização e a universalização do uso do gás, despachadas nos períodos de hidrologia desfavorável ou para atender os picos de demanda, utilizando o gás natural disponível, seja do pré-sal ou utilizando GNL, podem atuar como âncora para expansão da malha de gasodutos, e alcançar outros segmentos de mercado que não podem ser ignorados. A flexibilidade das usinas e a produção de gás associado ao petróleo podem atuar com um quadro de eventual necessidade de redução no fornecimento de gás em momentos de disponibilidade maior de hidroeletricidade, utilizando a injeção de volumes maiores de gás nos reservatórios para a produção de petróleo.
A orientação da política energética nacional, de priorizar o gás natural para atendimento do setor elétrico, não incentiva aumentos no consumo do setor industrial, que já não conta com preço competitivo. A não ser para aqueles que podem ser classificados como independentes, situação que também acaba contribuindo para onerar ainda mais os consumidores de volumes menores. Os preços médios do gás natural, que foram beneficiados recentemente com a redução relevante dos preços do petróleo, começam a sofrer aumentos com as recentes cotações no mercado internacional, mostrando que dificilmente não sofrerão mais oscilações a médio e longo prazos, inibindo a demanda.
Muito afetados pelos efeitos da pandemia, os segmentos de mercado, industrial, comercial, automotivo e geração termelétrica tiveram recuo significativo na demanda. Isso não aconteceu exclusivamente no segmento residencial, que apresentou crescimento, apesar do número total de consumidores residenciais do país, cerca de 3,66 milhões, ainda ser muito pequeno e fortemente concentrado na região Sudeste (90%), situação que precisa ser melhor trabalhada.
Concluindo, somos de opinião, com base nos dados disponíveis e no resumo aqui apresentado, que o PL 6407/13 não deveria ser aprovado, pois poderá trazer resultados ainda mais negativos para o setor, prejudicando a possibilidade de recuperação econômica do país e a qualidade de vida da sua população. Caso seja implantado, só nos restará esperar por uma “QUARTA NOVA LEI DO GÁS”.
* Antonio Gerson F. de Carvalho é engenheiro Mecânico, ex-presidente do Senge RJ, ex-superintendente de Gás da Secretaria de Energia do Rio de Janeiro, autor do livro “Gás Natural no Brasil: Uma História de Muitos Erros e Poucos Acertos”, publicado pelo Senge RJ
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