O Regime de Recuperação Fiscal (RRF) do Rio de Janeiro vence em setembro, sem nenhuma garantia de que vá ser renovado de forma automática, e o estado ainda não tem um projeto estratégico de desenvolvimento econômico e social, afirma o deputado estadual Waldeck Carneiro (PT-RJ). Para ele, seria importante definir uma agenda para recuperar a capacidade estadual de gerar receita e empregos de forma consistente, em vez de tentar sair da crise recorrendo à fórmula predatória e ineficaz de privatizar o mais rentável patrimônio público do Rio, a Cedae.
“Nunca vi nenhum estado sair da crise vendendo ativos”, critica o deputado. Em vez disso, ele propõe, por exemplo, potencializar diferenciais como a grande base de C&T da região. “Já nos demos conta de que o Rio sedia o maior número de instituições de ciência e pesquisa do país? São quatro universidades e dois institutos federais, três universidades estaduais, a Faperj, a Fiocruz, o LNCC, o CBPF, o Instituto de Matemática, o Jardim Botânico, o Museu Nacional.” Outra possibilidade estaria na produção agropecuária, “fenecendo há anos no eixo Norte e Noroeste, principalmente, e também no Sul fluminense”. Segundo ele, de tudo o que o estado consome de alimentos, cerca de 80% vêm de fora do Rio ou do Brasil.
Decisões de política pública nacional também influenciam diretamente a situação crítica do Rio: o fim da política de conteúdo local refletindo no desmonte da indústria naval, com fechamento de 30 mil empregos diretos; a tributação no destino dos produtos do setor de óleo, gás e energia; e as perdas acumuladas da Lei Kandir, de 1997, que impede o recolhimento de ICMS dos produtos primários e semielaborados exportados, o petróleo inclusive. Segundo pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Pará, o Rio perdeu R$ 50 bilhões nestes 25 anos de Lei Kandir.
O Regime de Recuperação Fiscal permite interromper pagamentos de débitos com a União, cerca de R$ 10 bilhões que o Estado estaria gastando com juros e serviços da dívida. Garante um alívio de caixa para ir mantendo o pagamento da folha dos servidores e reorganizando suas finanças, mas acarreta exigências “draconianas”, que travam investimentos e ameaçam os ativos públicos. E é uma “bomba relógio”, na expressão de Waldeck, porque a dívida será cobrada depois do encerramento do programa, acumulada. “Se for renovado o RRF, no exercício financeiro de 2024 não saberemos o tamanho da dívida que o governo terá pela frente.”
PL da Cedae
O parlamentar participou do debate sobre a Proposta de Privatização da Cedae – Abusos e Ilegalidades do Processo, realizado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no dia 5, ao lado de Ary Girota, presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgoto de Niterói e Região (Sindágua RJ), e Clovis Nascimento, presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge) e vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), com mediação de Felipe Araújo, diretor de Administração e Finanças do Senge RJ.
Para Waldeck, a solução para a universalização dos serviços de água e de saneamento, dentro deste projeto amplo para o Rio, não está na sua transferência para o setor privado, mas na consolidação de uma política de Estado, de longo prazo e com recursos consistentes. Para isso, apresentou um novo projeto de lei estadual (PL 2912/20), junto com os deputados Luiz Paulo e Gustavo Schmidt, determinando a aplicação do lucro liquído da Cedae na própria operação da empresa, em programas de ampliação e melhoria da rede de abastecimento de água, na expansão da coleta e tratamento de esgoto sanitário, entre outros. “As pessoas ainda não estão atentas à grave ameaça que paira sobre os interesses do povo do Rio, quando se arquiteta a entrega do setor de sanemaneto para o capital, notadamente o capital internacional”, alerta Waldeck.
Clovis Nascimento, presidente da Fisenge, denuncia inconstitucionalidades na proposta de concessão dos serviços da Cedae, que serão enfrentados pela entidade na Justiça. Entre as ilegalidades, ele cita o “fatiamento” do estado em blocos regionais para atendimento, feito sem autorização de lei municipal, nem do Executivo. Mesmo nos dispositivos de interesse comum, por conta de Regiões Metropolitanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que a titularidade nesses casos é compartilhada entre estado e municípios, mas que os serviços de interesse local (como água e esgoto) são de competência municipal. “Vamos atuar contra a privatização na linha política e jurídica, mostrar as inconstitucionalidades da proposta elaborada pelo BNDES e o riscos de mercantilização da água para os consumidores”, afirma Clovis.
Waldeck Carneiro lembrou, ainda, a Lei Complementar nº184/18, que fixa as diretrizes de governança da Região Metropolitana, na qual há dois dispositivos que não poderão ser ignorados no caso da Cedae. O primeiro exige que projetos de alto impacto metropolitano passem por consulta pública à população; o outro, que concessões ou privatizações sejam objeto de mensagem que o governador tem que encaminhar à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). O parlamentar também pretende contestar judicialmente o processo, e está reunindo as irregularidades constatadas até este momento, inclusive nas audiências públicas virtuais.
“Estamos sob o risco iminente de que um governo afundado em denúncias e em irregularidades, agonizando, seja o responsável [pela privatização da Cedae]”, diz o deputado, numa referência ao processo de impeachment instaurado contra o governador Wilson Witzel.
Déficit de interesse
Representantes dos interesses privatistas costumam enfatizar a existência de 35 milhões de pessoas sem acesso à rede de água potável para desqualificar o serviço público e justificar a tomada do setor pelo capital. Mas a maior parte dessa população desassistida, afirma Clovis, está localizada nas áreas mais pobres do país, em periferias, favelas, zonas rurais. “São regiões deficitárias que, portanto, não interessam à iniciativa privada, que visa lucro”, diz. “Porque os habitantes dessas regiões lutam para colocar o pão de cada dia na mesa. E pagar uma tarifa majorada pela variável do lucro não é simples.”
Outra equação que não para em pé, na avaliação dos especialistas, é o custo de R$ 1,40 pelo metro cúbico da água, definido na modelagem do BNDES, que a concessionária teria que pagar à Cedae pela captação e tratamento da água. “Como chegaram a esse número?”, questiona Clovis. “A Cedae gasta muito mais, com uma Estação de Tratamento (ETA), localizada em um ponto do rio Guandu, que recebe esgotos de três rios: Poços, Ipiranga e Queimados. Como a bacia desses rios não foi saneada, o custo dessa água é muito alto, usando, em alguns casos, até 100 toneladas de sulfato de alumínio por dia.”
Se o custo de tratamento ficaria com a estatal, a ideia é entregar ao setor privado a distribuição, “o filé mignon comercial”, nas palavras de Waldeck Carneiro. Por isso, o movimento em defesa da empresa tem como palavras de ordem uma Cedae “pública, estatal e indivisível”.
O deputado cita as muitas experiências de privatização dos serviços de saneamento que passam atualmente por um processo de reversão, ou reestatização, em vários países do mundo, com governos de diferentes perspectivas ideológicas. “Seja a Paris socialista, ou a Berlim, de centro-direita, ou ainda quase 20 estados nos EUA, a meca do liberalismo. Foram decisões que se balizaram no caráter estratégico do que estava em jogo. Estamos falando, no caso da água, de um bem essencial à vida. A coleta e o tratamento de esgoto representam a possibilidade de contenção das mais diferentes doenças, logo, com repercussão sobre a saúde pública, pela redução da pressão nas portas de entrada das unidades de atenção primária da rede pública de saúde”, diz.
Além disso, o parlamentar aponta a relevância crescente da água nas mudanças de matriz energética, no enfrentamento das mudanças climáticas e para interromper o ciclo de devastação ambiental. “Pode ser que a economia do petróleo, daqui a 30 ou 40 anos, se arrefeça, e paralelamente, vamos conhecer uma valorização da água como patrimônio e bem estratégico não só para as vidas humanas mas para a soberania dos países. Aqueles que detiverem as maiores reservas hídricas e os maiores mananciais, certamente, vão se posicionar melhor.”
Finalmente, não faria sentido para o Rio de Janeiro, em situação fiscal tão crítica, abrir mão da Cedae, que, em 2019, registrou um lucro líquido de R$ 1,1 bilhão e transferiu aos cofres do Estado R$ 374 milhões, principalmente na forma de dividendos. Aliás, Waldeck considera essa transferência um erro, razão por que apresentou o PL que estabelece o reinvestimento dos lucros na própria empresa.
Ary Girota, do Sindágua RJ, observa que, no Rio de Janeiro, já se viu que as privatizações, com suas promessas, não deram certo. Por exemplo, o esgotamento sanitário da Região dos Lagos, ainda precário. “É só entrar nas redes sociais de Arraial do Cabo, Cabo Frio, que são atendidos por dois grupos privados, e ver que a lagoa de Araruama, os córregos de lá, continuam recebendo esgoto, porque o projeto de engenharia não avançou. O fato é que não há retorno financeiro, e o setor privado não investe.”
Também em Niterói, depois de 20 anos de privatização, o dirigente afirma que os esgotos são lançados em rios e lagoas. “Não é preciso reinventar a roda, as tecnologias estão disponíveis, o problema é o interesse. O que a população precisa entender é que não é a privatização da Cedae, ou a concessão, que vai resolver o problema. A solução é que nós tenhamos políticas de Estado para o saneamento, e não de governo, momentâneo. E que elas abarquem as quatro vertentes: água, esgotamento, drenagem de águas pluviais, resíduos sólidos.”
Segundo o dirigente do Sindágua, o Estado enviou cartas com ameaças veladas aos municípios, pressionando-os a aderir ao modelo de concessão, amparado pelo novo marco legal do saneamento. O texto afirma: “não há mais como se ver a necessidade de lei autorizativa para celebração de convênios, o que facilita a gestão associada de serviços públicos, e, portanto, a adesão do município (…)” Com suas inconstitucionalidades, “se a lei abre a possibilidade de gestão associada, por que não fazer como o município de Maricá, uma gestão associada da Cedae com os municípios e o governo do Estado?”, pondera Ary. “É sabido que técnicos do BNDES já comprovaram que só a Cedae tem as condições e expertise de universalizar o serviço. Esse fatiamento da operação só o atende aos interesses dos que querem negociar com a vida das pessoas.”
Para ler o debate na íntegra: