Edital do BNDES para Cedae deve ir à Justiça, dizem especialistas

Para pesquisador da Fiocruz, Alexandre Pessoa, ponto mais crítico é a proposta de usar galerias pluviais para coletar esgotos. O presidente da Fisenge, Clovis Nascimento, adianta que entidades devem ajuizar ações contra a privatização dos serviços.

Os problemas do modelo apresentado pelo BNDES para concessão de serviços de água e esgoto no Rio de Janeiro vão acarretar prejuízos para a população e aumentar o risco jurídico da privatização, alerta o engenheiro civil Alexandre Pessoa, professor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio e coordenador  do Grupo de Água e Saneamento da Fiocruz. O presidente da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), Clovis Nascimento, que também é vice-presidente do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) e membro da diretoria colegiada do Observatório Nacional do Direito à Água e ao Saneamento (Ondas), adianta que, a se manter os termos atuais, as entidades vão à Justiça contra o edital do banco e contra o novo marco regulatório do saneamento (PL 462), que está na base do sua elaboração. A próxima audiência pública virtual para discutir o modelo está marcada para o dia 4 de agosto (veja como participar: http://www.rj.gov.br/consultapublica ) .

“Precisamos estar juntos na última audiência pública do BNDES, em defesa do direito humano à água e ao saneamento”, convocou o pesquisador da Fiocruz, que tem “críticas contundentes ao processo”. Ele participou de transmissão ao vivo que tratou dos impactos da privatização da Cedae, no último dia 8, no canal do YouTube do Senge RJ. Na ocasião recomendou com ênfase a leitura do documento produzido pelo Departamento de Recursos Hídricos e Meio Ambiente (Dhrima) da Poli/UFRJ, apontando “graves erros e lacunas” no edital de concessão de concessão dos serviços do saneamento ao setor privado. (Clique aqui para ler na íntegra).

“Vamos ajuizar várias ações em face dessa modelagem do BNDES”, avisa Clovis Nascimento. Entre as principais inconsistências, ele cita o fatiamento das regiões em blocos de atendimento, agregando municípios à sua revelia; a ruptura dos contratos de programa [estabelecidos entre a companhia estadual e os municípios], o fim do subsídio cruzado. Também observa que foi fixado um custo de R$ 1,40 por metro cúbico de água — que continuará sendo captada e tratada pela Cedae, para distribuição ao setor privado –, sem que houvesse apuração efetiva desse valor. O dirigente afirma que as entidades estão aguardando a versão definitiva do PL 462, após a votação no Congresso dos vetos presidenciais, para dar andamento à sua contestação jurídica.

O problema não é só o que está escrito, mas as omissões do edital. Segundo Pessoa, além de vários equívocos, o modelo do BNDES tem lacunas gravíssimas que, na sua avaliação, darão lugar a disputas jurídicas futuras também com as corporações concessionárias. Falhas que ele atribui à velocidade com que avança a privatização da Cedae, desrespeitando a pausa que seria necessária durante a pandemia de Covid-19. Rapidez que, na sua opinião, reflete a pressa de pagar a dívida com o governo federal.

Calcanhar-de-aquiles
O pesquisador da Fiocruz acredita, contudo, que “o calcanhar-de-aquiles” do edital do BNDES, elaborado pela Concremat, é a proposta de “coletor de tempo seco”. Ou seja, a intenção de usar as galerias pluviais (que servem hoje para recolher as águas das chuvas), para receber os esgotos, quando não estiver chovendo.

O problema do coletor de tempo seco é que, ao jogar esgoto na galeria, os rios continuarão a ser poluídos, explica Clovis, da Fisenge. “No sistema chamado de “separador absoluto”, que a Cedae adota atualmente, as redes de esgoto se conectam a uma estação de tratamento, o que  reduz em 95% a carga orgânica da água, antes de ser devolvida aos chamados corpos hídricos (rios, mananciais, mar, etc.). No coletor de tempo seco, os esgotos das galerias pluviais vão ter que passar por fora da estação, ou “bypassar,” durante o período de chuva, caindo direto nas águas.”

Na Região dos Lagos, a população faz críticas duras ao sistema de coletor de tempo seco, que está sendo proposto pelo BNDES para comunidades pobres do Rio e para Belford Roxo, Itaboraí, São Gonçalo, Nova Iguaçu, como espinha dorsal do modelo nos primeiros cinco anos. “Pode ser bom na Europa, mas quero falar da chuva no Rio de Janeiro”, compara Pessoa. “Quando chove, não tem Estação de Tratamento que segure. [O esgoto] vai bypassar. Vai ser a toda hora. E este é um debate da engenharia.”

O banco está usando a rentabilidade do investimento como principal critério para o projeto de concessão, critica o pesquisador. E não, como deveria ser, “o da epidemiologia, da saúde pública”, afirmou, lembrando que a água fornecida pela Cedae, além de atender à população, é a água de entrada para produção de vacinas e outras substâncias farmacêuticas na Fiocruz, precisando apresentar alto padrão de qualidade. “O critério da epidemiologia é o que leva em conta o risco de Covid-19 e outros agentes patogênicos. A proteção da vida, das favelas , dos bairros populares e Baixada tem que ser priorizada. Isso é saúde em projeto de engenharia.”

Segundo Pessoa, as diversas críticas que estão no documento da UFRJ já apontam que o modelo vai ter que sofrer alterações: “Alterações feitas, contudo, depois que fechou o process. Ou seja, estaríamos dando um sinal verde, como um cheque em branco.” Ele destaca, por exemplo, a ausência da norma de referência da ABNT para o escopo do projeto do BNDES. Para Clovis, trata-se de uma “artimanha para reduzir o custo de investimento”. E sem incluir no modelo as despesas que precisarão ser feitas com manutenção, consideradas “caríssimas”.

”Há muitos argumentos técnicos contra a modelagem do BNDES”, ressaltou Pessoa. Além disso, na sua opinião, discutir “a mercantilização e a financeirização do saneamento, uma questão que vai definir toda uma geração, durante uma pandemia gera insegurança jurídica e instabilidade em todo o processo”.  Ele lembra que, devido ao distanciamento social, várias audiências públicas não puderam ser realizadas, ou estão sendo conduzidas de forma limita, virtualmente.

Embora o governo e o setores interessados na privatização aleguem que ela poderá universalizar os serviços, o pesquisador da Fiocruz é cético: “Questiono se o setor privado vai fazer mesmo. Tenho preocupação de termos no futuro desertos sanitários no estado do Rio.”

Nesse sentido, o pesquisador da Fiocruz faz um chamado direto à Engenharia. “Precisamos ter maturidade institucional, técnica e política. Maturidade política é o seguinte – quero falar com os engenheiros: há um setor que acha que isso [a privatização] pode ser importante, porque pode gerar emprego e projetos. O problema não é a Cedae, mas os dirigentes da Cedae, que são nomeados pelo governador. É preciso que o governo do estado dê prioridade à pauta do saneamento.” A ilusão fácil, que defende privatizar tudo, diz Pessoal, tem resultado no país  em serviços ruins no transporte, nas barcas, no acesso à internet, no setor elétrico. Discutir serviços públicos é uma tarefa complexa, alerta o professor da Poli, seja com prestador estatal ou privado, e a engenharia não deve, insiste ele, “assinar um cheque em branco”.

Outro problema tem a ver com a fiscalização, conforme proposto na Lei 462, que cria novo marco legal do saneamento. “Querem remeter para a Agência Nacional de Águas (ANA) a regulação do setor de saneamento”, explica Clovis Nascimento. “A ANA tem expertise na gestão dos recursos hídricos, não em saneamento, que é um setor usuário.” Ele também observa que a tradição de regulação no país “é vergonha”. Segundo o presidente da Fisenge, “as agências estão a serviço das empresas privadas, não da população.” A própria Agência Reguladora de Energia e Saneamento (Agenersa), do estado do Rio de Janeiro, na sua opinião, não funciona bem.

Sai o subsídio cruzado, entra o subsídio ao capital
A Cedae atende a 64 municípios no Estado do Rio de Janeiro, mas 84% da receita vêm da capital. Por meio de subsídio cruzado, a estatal  promove ações necessárias nas cidades da Baixada Fluminense, Seropédica, Itaguaí e do outro lado da Baía de Guanabara, com exceção de Niterói e da Região dos Lagos, onde o serviço foi privatizado. Em Campos, a privatização não inclui, como costuma acontecer, a parte deficitária, que continua com o Estado. No caso de Niterói, Clovis destaca os subsídios garantidos pela Cedae à empresa privada: “Pegaram tudo pronto, e passaram quase dez anos pagando um centavo pelo metro cúbico de água, e vendendo a preços de mercado. O valor atual foi corrido por decisão judicial.”

Ainda assim, a Cedae tem registrado lucro nos últimos dez anos, garantindo dividendos para o Estado, dono de 99,9% das suas ações. Foi eleita em 2019, a melhor empresa de infraestrutura pela revista Exame. Já em Manaus, onde o serviço foi privatizado há mais de 20 anos, apenas 12% da população têm acesso a coleta de esgoto; e apenas 52% da capital atendida com água tratada. Em Tocantins, a BRK (controlada pela Brookfield canadense), que substituiu  a estatal Saneatins, devolveu 78 municípios deficitários. “Numa audiência pública na Assembleia de Tocantins, em Palmas, perguntei ao presidente da BRK por que eles tinham feito isso – e a resposta foi que empresa privada não tem que tratar de município deficitário, e sim o Estado, o poder público”, conta Clovis.

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