Foto: Pixabay
Sustentabilidade financeira dos serviços de saneamento é importante, mas a prioridade deve ser salvar vidas.
O Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS) vem se manifestar a propósito do documento “O Fornecimento de Água Não Pode Parar – Posicionamento do setor de saneamento sobre medidas de controle da expansão da COVID-19 e decorrentes medidas de proteção social”, divulgado em 25/03 e subscrito pela Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON) e pela Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (AESBE).
Preliminarmente, registre-se que a dramática crise que atravessa a humanidade desvela a importância de um sistema público de saúde, nos moldes do SUS, e do acesso a serviços públicos essenciais como os de saneamento básico. Também no Brasil o momento requer a forte presença do Estado, para minimizar as consequências da pandemia sobre uma das sociedades mais desiguais do mundo. Na prática, o que se constata é a inviabilidade das teses que pugnam pelo Estado mínimo.
O combate eficaz à pandemia de COVID-19 tem como linha de frente o acesso universal a condições de higiene pessoal, e exige o acesso à água tratada, por toda a população.
Lavar as mãos com sabão, quando feito corretamente, é fundamental na luta contra a doença provocada pelo novo coronavírus (COVID-19), mas bilhões de pessoas não têm acesso imediato a um lugar para lavar as mãos, afirmou o Fundo das Nações Unidas para a Infância na sexta-feira (13/03). No total, apenas três em cada cinco pessoas em todo o mundo têm instalações básicas para lavar as mãos, de acordo com os dados mais recentes. Lamentavelmente, também no Brasil grande parte da população não tem acesso a água e sabão para lavar as mãos. De acordo com os dados do IBGE, após uma série de vários anos de redução, desde 2016 vem aumentando a desigualdade social.
O documento da ABCON e AESBE, que pretensiosa e equivocadamente se anuncia como um posicionamento de todo o setor de saneamento, aborda pontos importantes relativos à estabilidade econômica das prestadoras de serviços. Contudo, não se dedica a examinar com a necessária profundidade, nesta situação crítica, como as prestadoras de serviços de saneamento devem levar a cabo a missão urgente de assegurar acesso à água a toda a população, independentemente de sua capacidade de pagamento.
O referido documento apresenta seis propostas dirigidas ao Governo Federal, sendo apenas uma delas em benefício direto aos usuários, com o congelamento de tarifas por 120 dias, e as demais voltadas para a saúde financeira das empresas, públicas e privadas.
Assim, o documento claramente prioriza medidas voltadas para a estabilidade econômica e financeira das empresas prestadoras de serviços, face a impactos decorrentes de uma expectativa de queda da receita associada à isenção de tarifas sociais e a um possível crescimento da inadimplência.
Ressalta-se que os dados do SNIS 2018 apontam que as famílias beneficiárias da tarifa social representam pouco mais de 5% do total dos usuários (economias ativas) do conjunto de empresas prestadoras estaduais. Sendo assim, a participação dessas na receita total é, seguramente, inferior a esse patamar.
Pode-se prever que a emergência sanitária pela qual o país atravessa provocará a redução de receitas dos prestadores, principalmente porque será necessário evitar o corte do abastecimento e aceitar inadimplências. Por isso, a conjuntura de crise aguda exige, além de apoio do erário, racionalização da gestão, e também usar as reservas próprias eventualmente disponíveis para financiar as medidas emergenciais e suspender o pagamento de dividendos e a transferência de lucros para os acionistas.
Chama a atenção que as propostas apresentadas são anunciadas, de modo genérico, como necessárias para “assegurar as condições básicas de funcionamento das empresas de saneamento, com foco na proteção da cadeia de fornecimento e na estabilidade econômico-financeira nesse momento crítico”, porém o documento não apresenta qualquer compromisso das empresas para mitigar os riscos associados à ausência ou à insuficiência de água no cenário atual. Tampouco se refere a ações dirigidas à produção e aplicação de soluções alternativas que protejam as parcelas da população em situação de vulnerabilidade social, e que usualmente sofrem os efeitos da insuficiência ou da inexistência de oferta de água potável. Causa estranheza, inclusive, o pleito para dispensa de licenciamento ambiental, inserido sem justificativa plausível que o vincule à emergência de COVID-19.
Por fim, o pleito de adiamento do recolhimento de FGTS e de INSS, se, por um lado, alivia as despesas da empresa, por outro impacta financeiramente seus trabalhadores, o que soa inteiramente injusto.
O conjunto de propostas apresentadas por ABCON e AESBE busca obter, do Estado, subsídios para a operação das empresas do setor e minimizar seus riscos financeiros, mas não se pode esquecer que muitas delas são privadas ou com forte participação do capital privado em sua composição acionária. Porém, unilateralmente, não inclui qualquer compromisso de utilização desses benefícios para o atendimento às necessidades expostas pelo cenário que hoje vive o país, notadamente quanto à perenidade da oferta de água à população, e ao cuidado específico com as parcelas da população em situação de vulnerabilidade social.
A sustentabilidade financeira dos serviços públicos de saneamento é importante, mas em uma emergência sanitária dessa proporção, água para salvar vidas deve ser a prioridade absoluta. Mais do que nunca, é preciso garantir as condições básicas de higiene para todos os brasileiros e brasileiras, em particular os que vivem nas situações mais vulneráveis.
Brasília, 26 de março de 2020.
Coordenação Colegiada
Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS