(Foto: Marcelle Pacheco)
Por Verônica Couto – SOS Brasil Soberano
Vivemos num Estado que desrespeita os limites constitucionais para a garantia dos direitos fundamentais, em que o Judiciário ocupa o papel de protagonista, aplicando a Justiça de forma seletiva, com base em uma lógica que favorece o poder econômico e reprime os “indesejáveis”, todos aqueles que se opõem ao projeto neoliberal. Esse, em síntese, é o quadro traçado pela professora de Direito da UFRJ Carol Proner e pelo juiz do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) Rubens Casara, durante o Soberania em Debate, promovido pelo movimento SOS Brasil Soberano, no último dia 10. Se a pós-verdade é aquilo que parece mas não é verdade, vivemos no que Casara chama de Estado pós-democrático. Rompidas as regras do jogo democrático, o mercado manda e pode tentar tudo, afirmam os juristas. Inclusive interditar a participação de candidatos populares nas eleições, ou até impedi-las, diz Carol.
As eleições de outubro correm risco? Segundo a professora da UFRJ, “nada mais pode nos surpreender, pode haver um golpe sim”. Para a jurista, estamos em um processo de golpe, que não acabou. “Se o projeto neoliberal, radicalizado como está, não puder ser concluído, por que não jogar essas eleições para a frente, para que certas reformas possam ser feitas? Eu não me surpreenderia, embora não haja nenhum elemento nesse sentido agora. As necessidades para a condição de não eleição teriam ainda que surgir.” Por exemplo, se não for viabilizado um candidato que possa dar continuidade a esse projeto econômico.
Embora a população tenha se acostumado à ideia de que os golpes se caracterizam pelos atos de violência explícita, como quando os militares derrubam à força um presidente eleito, nem sempre é assim. Tanto no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, quanto no processo contra o ex-presidente Lula, Carol aponta o papel seletivo e sem controle tanto do Judiciário quanto da mídia para o tipo de golpe parlamentar desferido no país, ainda mais completo e abrangente do que os aplicados em outros países, como Honduras.
“Basta ser um legalista para entender que vivemos processos injustos conduzidos por uma Justiça seletiva”, diz Carol. Resultado, segundo ela, da “racionalidade neoliberal”, entendida como a lógica que prioriza os interesses econômicos dominantes na sociedade e que se impôs sobre o contexto nacional.
Uma lógica que, de acordo com Casara, desmontou os fundamentos do Estado Democrático de Direito que foi construído no pós-guerra para evitar a volta da barbárie, por meio da determinação de limites rígidos para o exercício de qualquer poder, particularmente do poder econômico. “Essa forma jurídica foi superada pelo que alguns autores têm chamado de Estado pós-democrático, em que esses limites ao poder para garantia dos direitos fundamentais desapareceram. Isso, em função de uma nova razão neoliberal, que é a nova visão de mundo, para permitir uma acumulação ilimitada de capital, especialmente do financeiro.”
Nesse contexto, a autonomia do Judiciário e do Ministério Público, na avaliação de Carol, pode passar a significar simplesmente não ter que dar satisfação a ninguém. “Quem controla esses órgãos? Caso um agente público queira, eventualmente, cruzar as fronteiras com documentos de Estado, quem é que pode controlar isso? A que ponto chegamos. Isso é muito grave para a soberania nacional.”
Sem os limites do Estado de Direito para o exercício do poder, a autonomia deriva para a seletividade, para o arbítrio, diz Casara. “Você escolhe contra quem exercer o poder; não está trabalhando na autonomia adequada à Constituição. A soberania no Brasil, hoje, está reduzida à necropolítica, a possibilidade de matar, e matar a quem não interessa. E essa morte não precisa ser física; pode ser simbólica, por exemplo, no encarceramento de determinadas pessoas.”
Consulta da Comissão Interamericana
Mesmo em processos políticos, como um impeachment, Carol destaca a necessidade do devido processo legal, que inclui motivo jurídico que legitime a quebra do pacto democrático firmado nas urnas.”Sem isso, há uma anomalia a priori”, diz , lembrando que outros países da América Latina têm sofrido golpes similares, com participação de setores do Sistema de Justiça: “Em Honduras, o presidente Manuel Zelaya chegou a ser retirado de casa de pijamas”, recorda.
A anomalia do processo contra Dilma se tornou ainda mais evidente, na sua opinião, porque, além da falta dos elementos jurídicos, “rompe-se com um mandatário e, no seu lugar, surge uma pessoa que assume um projeto oposto ao que tinha sido depositário do voto popular – são dois golpes.” A jurista ressalta, ainda, que o STF [Supremo Tribunal Federal] tem sua responsabilidade, por ação e por omissão. “Foi interpelado e nada fez; e houve o golpe parlamentar”.
Para estabelecer critérios que reduzam as possibilidades de golpes dessa natureza, com base parlamentar e jurídica, e apontar parâmetros para que um julgamento político possa ser considerado justo, está em curso uma consulta na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Segundo Carol, aberta inclusive a contribuições de ONGs e representações de movimentos sociais. A consulta foi motivada pelo caso brasileiro e tem no seu centro, além das manobras utilizadas para afastar do poder Dilma Rousseff, também as que derrubaram Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012, e Manuel Zelaya, em Honduras, em 2009, todos eles governantes eleitos pelo povo.
Sobre os juízes que desafinaram o coro dos golpistas e se posicionam contra os golpes – em Honduras vários chegaram ser destituídos de seus postos no Supremo, em represália a seus votos -, Carol lembra que a Corte Interamericana já declarou o direito de defender a democracia. “Parece uma coisa óbvia, mas, infelizmente, é preciso defender – judicializar – o direito de defender a democracia. Porque alguns setores do Judiciário percebem anomalias no processo de julgamento político, que fazem com que seja injusto. Um golpe.”
A ruptura democrática e de legitimidade do poder Executivo, no impeachment de Dilma, e as sucessivas denúncias contra o Legislativo acabaram por concentrar no Judiciário as expectativas de um público que quer a reorganização política da sociedade, avalia Carol. “E aí é preciso estar atento”, adverte. A tradição brasileira de “constitucionalização dos direitos fundamentais”, um modelo de Estado liberal, já dá ao Judiciário a responsabilidade por dirimir conflitos nas demandas e disputas de diferentes segmentos da sociedade. Mas o seu protagonismo sobre outros poderes pode conduzir a distorções ou ao comprometimento com um projeto dominante.
“A Constituição de 88, como qualquer texto normativo, não fala por si; é um documento de referência para disputas sociais”, diz a jurista, para quem, nesta quadra da história, o “capitalismo nunca foi tão agressivo” e as disputas, tão difíceis. E se complicam ainda mais com as perdas de direitos sociais vinculados ao texto constitucional, promovidas pelo governo Temer/Meirelles. Porque a Constituição foi pautada sobre as regras, garantias e normativas da CLT, que agora está desfigurada pela Reforma Trabalhista. “No momento em que os acordos prevalecem sobre o legislado, a própria Constituição se enfraquece”, diz. “O capitalismo não precisa fazer nenhum tipo de acordo democrático.” O que não significa que se deva, na opinião dela, abrir mão da Constituição, ainda um documento importante para as demandas sociais.
Aos inimigos, a lei
Se o Estado moderno sugere a separação entre os poderes político e econômico, estamos vivendo de novo a identidade estreita entre eles, com o apoio explícito do Judiciário, integrado por juízes de tradição profundamente autoritária. “A norma produzida no país é autoritária, porque o juiz parte de um pressuposto autoritário”, afirma Rubens Casara. “Virou um homologador das expectativas de mercado e instrumento de controle da população indesejada. Quem é essa população indesejada? Pode ser o pobre, o que não consome, ou um inimigo político.” Para ele, os juízes, sem contarem com a legitimidade do voto e das dinâmicas populares, atuam, em sua maioria, para restringir e não para ampliar direitos.
Na prática, a situação atual, diz Carol, é que nunca se matou e se criminalizou tanto os ativistas que defendem direitos fundamentais. Além do assassinato da vereadora do PSOL-RJ Marielle Franco, ela cita movimentos indígenas acusados recentemente pelo Ministério Público de organização criminosa. A esquerda se acostumou a atuar no campo das instituições democráticas que, reafirma a jurista, não estão mais funcionando.
A partir da Escola de Chicago, nos EUA, lembra Carol, iniciou-se a convergência entre as doutrinas da Economia e as do Direito, quando o capitalismo precisou “da complacência do Judiciário e que os juízes entendessem que o marco econômico deveria reger o mundo”. Surge então a racionalidade neoliberal. “O Judiciário precisava entender que, na hora de arbitrar sobre um conflito, o Estado não teria que se meter, mas adotar uma norma adequada ao Estado mínimo. E é o que vem sendo feito desde então, de forma cada vez mais sofisticada.” Atualmente, ela conta que, assim como os médicos viajam para conferências de grandes laboratórios farmacêuticos, temos juízes nas grandes conferências jurídicas realizadas nos EUA. “Ali, naturalmente, a racionalidade que instrui aquelas pessoas não precisa ser treinada por um agente da CIA, aquela coisa cinematográfica. Basta estar nesses centros de pesquisas, onde sabemos que a matriz de pensamento teórico é a do Estado mínimo. O que vai permitir também uma soberania mínima.”
Nesse sentido, Casara observa que muito do que se pode considerar como enganos do Judiciário são acertos de uma estratégia realista e pragmática de poder. “Parafraseando Foucault, quando se fala que o Judiciário não funciona, na verdade, ele funciona mas para atender a uma funcionalidade política, muito bem definida, que não é o interesse da maioria da população. O que foi feito para não funcionar, quando não funciona, funciona.”
Uma das recentes decisões polêmicas do STF foi a restrição do foro privilegiado. Casara avalia que a mudança significará, na prática, a prescrição dos crimes em muitos casos, que, próximos de serem julgados no STF, começarão a tramitar do zero na primeira instância e dificilmente serão concluídos a tempo. A medida também poderá criar um problema grave de governabilidade. “Qualquer juiz pode decretar prisão de prefeitos, governadores… Hipoteticamente, imagina que acabem com foro também para desembargador; qualquer juiz poderá prender um desembargador, criando um caos normativo, mas que tem uma funcionalidade.” Na sua opinião, falta uma reflexão profunda sobre as consequências de várias medidas do STF ou do Legislativo. “É um equívoco. O ‘achismo’ leva a sociedade brasileira a esse quadro de déficit democrático.”
TV, a prótese de pensamento
Para esse “achismo”, Carol atribui à mídia uma forte contribuição, ao fornecer informação pasteurizada e enviesada: “a pós-verdade, que pode ser produzida de muitas formas, com manipulação dos tempos de veiculação, de conteúdos, de programas. A mídia cumpre um papel, com o Judiciário seletivo e autoritário, para limitar a a democracia.”
A televisão, para Casara, funciona nesse contexto como uma “prótese de pensamento”: “a pessoa não pensa; deixa a TV pensar por ela”. Um dos resultados é o grande clamor nacional, principalmente na classe média, por mais prisões, como medida de salvação nacional. “O Brasil tem a terceira maior população carcerária do planeta. Mas o discurso dos meios hegemônicos de produção de subjetividade, em especial da televisão — na linha do bandido bom é bandido morto –, é o de que aqui vigora a impunidade. Não é verdade. As pessoas estão sendo presas, mas em um processo seletivo. Quem está sendo preso são os indesejáveis.” Ao contrário do senso comum que repete que as penas no Brasil são leves, ele sugere compará-las com as penas aplicadas em lugares como a Alemanha, para verificar que as nossas são bem mais pesadas.
Nesse movimento de encarceramento seletivo, as delações se tornaram um grande instrumento, diz Casara. Segundo ele, o objetivo das delações é produzir fontes e elementos a partir dos quais se consiga obter uma prova adequada a um fato. Este mecanismo, contudo, “importado acriticamente”, tem gerado distorções adequadas não aos fatos mas à “racionalidade neoliberal”, tornando todos os valores negociáveis: “Numa jurisdição democrática, a delação exige liberdade e verdade.” Na sua aplicação distorcida, explica, “no lugar do valor verdade, entra o valor informação; antes mesmo da prova, o juiz já aceita a delação como a única verdade possível”. É o que Casara denomina de “pós-verdade processual”, ou o primado da hipótese sobre o fato: “Não estamos mais comprometidos em descobrir o que aconteceu, mas em conformar essa hipótese, muitas vezes delirante.”
Não só a verdade, mas a liberdade também perde importância nesta racionalidade neoliberal, afirma o juiz. Torna-se algo negociável; para não ser preso ou para ser posto em liberdade, o delator fala o que a autoridade quer ouvir, confirma a hipótese inquisitorial que é a única chave para sair daquela situação. “Um procedimento que desconsidera a liberdade como valor importante e fere até o quadro normativo da Revolução Francesa”, avalia Casara.
A “judicialização da política”, quando os tribunais capturam as decisões que deveriam ser tomadas nas instâncias políticas, de representação da sociedade, afeta diretamente a soberania do país, inclusive na sua capacidade de desenvolvimento, afima Carol. O sistema de Justiça como um todo, ao atuar concentrando todo o poder no juiz de primeira instância, como ocorre em Curitiba, revela, na opinião da jurista, um “ativismo” com graves consequências econômicas, pela forma de intervenção adotada pela Operação Lava Jato nas empresas brasileiras.
Mobilização e Direito
“No Direito, temos uma imensa responsabilidade neste momento; estamos sendo chamados a explicar o que está acontecendo, como pudemos retroceder tanto em tão pouco tempo”, destaca Carol. Por outro lado, ela está cada vez mais convencida de que as saídas não dependem do campo juridico mas dos movimentos sociais. “Nosso legado jurídico e democrático e as certezas que tínhamos – e que achávamos que seriam suficientes para não retroceder – estão desaparecendo. Mas acho que não passa pelo Direito uma solução.”
Na busca de saídas, entre os movimentos interessantes que surgiram após o impeachment, Carol Proner cita a formação de frentes de luta, como as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo, tentando acumular pautas comuns. “Precisamos avançar muito mais, aprofundar a democracia e nos apoiar nas contradições ‘deles’. Na área do Direito, busca-se a união de juristas por meio da Associação de Juízes pela Democracia (AJD), a abertura de canais de denúncia jurídica e resgatar nosso legado, não permitir mais retrocessos.”
Um dos resultados desse esforço foi a consolidação dos erros encontrados no processo movido pelo juiz Sergio Moro contra Lula, no livro Comentários a uma sentença anunciada (clique aqui para baixar), organizado por Carol, junto com Giselle Citadino, Gisele Ricobom e João Eduardo Dornelles, no qual 122 juristas denunciam desde a competência de foro (São Paulo, e não Curitiba) até questões específicas probatórias e de testemunhas que foram menos consideradas do que as delações. “Uma delação se sobrepõe a mais de 70 testemunhas”, conta a jurista, que classifica os erros no processo contra o ex-presidente como um “verdadeiro escândalo”. “As imagens da ocupação do triplex do Guarujá pelo MTST trouxeram à tona uma grande falácia do imaginário popular, quando se vê as condições tão pouco atraentes daquele apartamento.”
Segundo Carol, apesar da sentença do TRF-4, Lula pode se candidatar a presidente. Preso ainda de forma provisória, pode ser mantido como candidato pelo PT até 5 de agosto, data para o registro eleitoral, quando só então se inicia o prazo de contestação. Um eventual processo de impugnação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), caso ocorra, é independente do que corre na Justiça do Paraná.
Por ser a instância capaz de reconhecer a presunção de inocência, restaurando direitos que são de todos e também a integridade política do ex-presidente Lula, o STF teria, na avaliação da professora da UFRJ, “maior responsabilidade”, na direção de normalizar o processo político brasileiro.
Para resistir aos retrocessos gerais no país, Rubens Casara defende o resgate da própria ideia de política – “voltar a considerar que determinados valores são inegociáveis”. Para ele, se o país conseguisse pelo menos retomar o projeto normativo liberal, já estaria de “bom tamanho”, com liberdade, igualdade, fraternidade. No campo do Poder Judiciário, diz, isso significa apenas seguir a Constituição, restabelecendo os limites que ela impõe.
“A democracia não é só votar de quatro em quatro anos, mas participação efetiva e ações voltadas a realizar o projeto constitucional, de vida digna”, afirma Casara, que lançou em 2017 o livro “Estado Pós-Democrático – Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis (Civilização Brasileira 2017). “Equívocos tremendos foram praticados desde 88, que resultaram nesse quadro antidemocrático. Não fomos capazes de construir uma cultura democrática, de respeito às garantias fundamentais, e esses equívocos resultam neste quadro antidemocrático. Somos uma sociedade forjada a partir da escravidão, que se baseia na naturalização da hierarquia. Há pessoas que podem ser vítimas de uma blitz, de uma ‘dura’ da polícia; e outras não. Achar que isso é normal é muito grave. O maior problema do Brasil não é a corrupção, é a desigualdade.”
O Soberania em Debate é um espaço de entrevistas, conduzidas pela jornalista Camila Marins, que integra a agenda de atividades do movimento SOS Brasil Soberano, fórum mantido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e pela Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), para discussão de propostas para o desenvolvimento soberano, igualitário e justo do país.