(Foto: Alessandro Carvalho)
Por João Pedro Stédile – economista e membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Hoje nos encontramos diante uma crise profunda do modo capitalista de organizar a produção e do Estado burguês, mas não é somente a crise cíclica de acumulação que afeta o mundo inteiro e, sobretudo a América Latina. Vale ter em conta que na década de 1990 tivemos a hegemonia total do neoliberalismo e que, na década de 2000, o ascenso de Chávez e as vitorias eleitorais em vários países colocaram na ofensiva o campo popular.
No atual contexto, os três projetos que antes disputavam a hegemonia – neoliberalismo, neo-desenvolvimentismo e o projeto da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba) – estão em crise. Porém, não é um cenário de derrota das forças populares, é um cenário de incremento da disputa, da confrontação, e da incerteza, porque todos estão em crise. E não há sinais de que algum deles logre a hegemonia no curto prazo.
Basta olhar a situação do império e do neoliberalismo: Trump ganhou, e então? Desnudou-se ainda mais a natureza do imperialismo. No Brasil teve um golpe, e então? Os golpistas se revelaram lúmpens, ladrões, corruptos e não têm nenhuma legitimidade.
Logo, a situação é que o capitalismo está dominado pelo capital financeiro e por seus braços das companhias transnacionais, mas está em crise. Por isso mesmo, nossa tarefa é identificar quem são nossos principais inimigos e como essas forças do capital atuam em nossos países, para confrontá-las. Devemos, sobretudo, procurar em nossas articulações internacionais do campo popular formas urgentes para enlaçar nossas lutas comuns contra os inimigos comuns. Por exemplo, temos uma campanha internacional em defensa do direito à água, mas não fazemos lutas concretas. É necessário confrontar, por exemplo, a Coca-Cola e a Nestlé, para afetá-las.
Mesmo na agricultura, cinco ou seis companhias controlam as commodities do mundo inteiro. No leite igualmente. E nos agrotóxicos é ainda pior: cinco ou seis companhias europeias controlam todo o mercado e estão causando câncer em pessoas no mundo todo. Temos que confrontá-las com ações concretas. Também sobre o tema dos refugiados políticos e econômicos que afeta Oriente Médio, África e Europa, as forças populares da Europa necessitam fazer algo concreto.
Para as forças populares, o principal é entender que se há crise, há um sinal de tempos de mudanças. E que temos que aprofundar nossa organização e aumentar a luta de massas. Somente ela pode desequilibrar a correlação de forças em cada um de nossos países, e por tanto, ao nível continental.
Articulações internacionais
O papa Francisco tem se revelado um líder religioso com alcance politico, que está refletindo sobre os verdadeiros dilemas que afetam a humanidade e seu futuro. Por isso, hoje é uma referência para todas as forças populares, independentes de fé ou religião. Suas reflexões e alertas sempre são muito corajosos e colocam os governos contra a parede. No assunto das armas, por exemplo, nos alegra que tenha se “tocado na ferida”, pois a Europa é quem produz mais armas, inclusive gases letais utilizados nas guerras regionais do Oriente Médio. No entanto, os governos europeus não assumem sua responsabilidade nem sequer com as consequências mais próximas como a migração das multidões do Oriente e da África para seu território, como resultado das guerras.
No tema do meio ambiente Francisco nos presenteou com uma Encíclica maravilhosa, que é a mais importante reflexão critica sob o assunto, que nem mesmo a tradição de pensamento marxista construiu. Devemos transformar a Encíclica num instrumento didático de educação para as bases, sobre a natureza, as causas e as saídas para os problemas ambientais.
Em nossas metodologias dos Encontros Mundiais de Movimentos Populares em diálogo com o papa, temos construído agendas pontuais para cada encontro. No último, focamos no tema dos refugiados, do meio ambiente e da hipocrisia da democracia burguesa, já que o voto popular decide muito pouco nos processos eleitorais, que são sequestrados pelo capital.Tenho entendido que esses assuntos ainda estão na mesa, pois não conseguimos aprofundar o suficiente no ultimo encontro, portanto devemos seguir trabalhando essa linha.
Sobre os assuntos dos refugiados, migrantes e o direito à cidadania universal que cada pessoa teria de circular livremente em nosso continente, precisamente, Evo Morales acabou de realizar um encontro internacional na Bolívia, para coletar opiniões que pretendem levar como proposta as Nações Unidas, para que podamos num futuro ter um mesmo passaporte.
O tema mais grave é o que trata da falência do Estado burguês que foi gestado pela revolução francesa em 1789 e que representava uma proposta da burguesia industrial para regular as relações sociais. Agora, a burguesia financeira e internacional não tem interesse nesse Estado, passa por cima dele. Então as forças populares devem pensar, debater e construir um novo tipo de Estado, e uma nova forma de participação democrática, popular. Mas, estamos no meio da crise e ainda não estão claros os caminhos e as construções possíveis. Mas teremos muitas mudanças pela frente…
Espero que a próxima Conferência Internacional da Via Campesina, a ser realizada em julho no País Basco, se dedique a analisar quais ações devemos adotar de forma conjunta em todo o mundo, entre as organizações campesinas, para confrontar esse desafio enquanto temos tempo.
Por outro lado, em novembro próximo, em Caracas, teremos a Assembleia Internacional de Movimentos e Organizações Populares que é parte de um processo de construção coletiva que vem de anos atrás. Na América Latina e no Caribe, esse processo tomou forma no final dos anos 1980 com a “Campanha 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular”, logo depois, com a “Campanha contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas]” e mais tarde com a construção da “Articulação dos Movimentos da Alba”. Mas também temos impulsado processos similares na África, no Mundo Árabe e na Ásia.
Logo, como parte de um processo permanente de articulação internacional, precisamente para enfrentar a crise do capitalismo a partir dos movimentos populares, estamos construindo esses processos. Não são datas ou eventos, são processos permanentes, nos quais podemos nos identificar com propostas e programas, criar confiança política e identidade comum e assim avançar.
Oxalá se realize o sonho de Marx, com sua Associação Internacional de Trabalhadores, o sonho de Martí, Che e Fidel, que geraram a Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina (Ospaal), como uma articulação do Terceiro Mundo frente ao imperialismo na década de 1960. Agora, o que resta às forças populares é seguirem adiante, com generosidade, pluralidade, evitando os protagonismos, vedetismos pessoais e falsos hegemonismos.
*Artigo originalmente publicado no portal América Latina en Movimiento. Traduzido por ALBA Movimientos Brasil.