A bomba relógio do setor elétrico e o avanço do desastre das privatizações

A conta não fecha: Brasil busca se industrializar ao mesmo tempo em que entrega seu poder decisório dentro do sistema elétrico nacional, fundamental para a viabilidade de programas como o PAC e Nova Indústria Brasil

A energia no Brasil irá ficar mais cara. Não é futurologia ou projeções abstratas. O gráfico tipo “boca de jacaré”, que mostra um enorme descolamento do preço da energia da inflação, comprova o que já ocorre e deverá se intensificar: com os lucros à frente dos interesses nacionais, o setor elétrico privatizado no apagar das luzes do governo Bolsonaro será um desafio maior do que já é para o governo de um Brasil que se pretende soberano. Ninguém sabe ao certo como superar o desafio imposto pelo modelo imposto por Temer e Bolsonaro. E muito pouca gente parece estar se esforçando para isso.

O descontrole no preço da energia e seus impactos em absolutamente todos os setores produtivos e na vida dos brasileiros já acontece porque, quando houve a privatização, embutido em seu texto, estava a descotização das usinas. No regime de cotas, a energia era vendida a preços regulados para as distribuidoras. De lá para cá, passou a ser oferecida no mercado livre de energia. Esta mudança , de forma isolada, eleva os preços da energia que saía das usinas de R$ 90 – R$ 110 para R$ 200 – R$ 250 por kWh, ou acima de R$ 300,00 em caso de escassez hídrica, por exemplo.

“A descotização fará com que a gente pague, inevitavelmente, mais caro na conta de luz. É um aumento estrutural que não pode ser parado ou amortizado”, destaca Felipe Araújo, diretor de Negociações Coletivas do Senge RJ e funcionário da Eletrobras, em entrevista ao Soberania em Debate. E alerta que a esse primeiro golpe, se somaria um segundo: o fundo criado pelas empresas na ocasião da privatização com o objetivo de reduzir as tarifas por cinco anos está para terminar, em 2027. Aí, então, arcaremos todos com os custos pressionados não pela demanda do país, mas pelos lucros dos acionistas.

“O fundo que vem subsidiando a tarifa foi criado para, após um grande aporte no primeiro ano para segurar o preço, ir desmamando a sociedade, nos quatro anos seguintes, dos valores que costumavam pagar pelo consumo de energia. A ideia é que a população não relacione a privatização com o aumento da conta de luz. Que ela não perceba que está sendo roubada pela privatização e não por conta de um movimento natural da vida, do mercado ou aumento inflacionário”, explica Felipe.

Puro sumo do entreguismo

A Eletrobras já foi conhecida como “mola propulsora do desenvolvimento nacional”. Hoje, o apelido carinhoso dado à ex-estatal é o de “vaca leiteira do mercado”. A venda, por si só, não foi capaz de virar a chave, mas a “governança” instalada na empresa após a venda fez esse trabalho.

O fim do período de amortização dos investimentos para a construção das usinas reduziria o custo da energia, caso não houvesse a busca pelos lucros | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Segundo Felipe, a composição do conselho da empresa, após a privatização, foi pensada para não deixar brechas para o governo Lula, que poderia vir a seguir. Ao invés de compor o conselho nominalmente, o processo foi feito em chapas fechadas. Assim, Lula não poderia tirar o indicado de Bolsonaro. E o processo passou longe das melhores práticas corporativas, com um resultado, no mínimo, escandaloso: a maior parte da direção do conselho da empresa foi indicada pela 3G Radar, que possuía, à época, menos de 1% das ações da empresa.

Em áudio vazado de uma reunião interna, Vicente Falconi, presidente do Conselho de Administração da empresa, explica como foi feita a articulação. “Sem saber que estava sendo gravado, ele contou que a articulação para definir quem comandaria o conselho foi feita nos cafezinhos. Eles gostam muito de falar em governança corporativa, usam todos os termos estrangeiros típicos do mundo corporativo mas, no mundo real, o caso da Eletrobras é sujo. Eles dizem que a Eletrobras é uma Corporation, mas se é ‘no cafezinho’ que você coloca o poder da gestão na mão de um acionista com menos de 1% das ações, inviabiliza qualquer discurso liberal meritocrático a respeito de governança corporativa”, aponta Felipe.

Um dramático último gole em 2025

A administração do conselho por um sócio minoritário colocou, na prática, a Eletrobras nas mãos do mercado. Mas havia um obstáculo a ser vencido. Embora a União tenha reduzido sua participação acionária de 70% para 40%, tornando a empresa privada, ainda era ela a maior acionista. Com isso, um governo nacionalista e desenvolvimentista ainda teria muito poder para utilizar a empresa a serviço dos interesses nacionais.

Assim, quando da privatização, foi estabelecido por lei que todos os sócios não teriam direito a voto acima de 10% das ações. A regra era tão gritantemente golpista que, após articulação do Coletivo Nacional dos Eletricitários, o Governo Lula abriu Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) requerendo seus direitos de voto correspondente à sua fatia da empresa. O resultado não podia ser pior.

Parte do decepcionante acordo fechado entre União e Eletrobras privatizada, empresa foi liberada do investimento de R$ 20 bilhões acordado na privatização | Foto: Eletronuclear/Divulgação

“Infelizmente, a gente tinha chance de recuperar o controle da empresa, ainda que não reestatizasse. Votando pelos 43% das ações da União, ela seguiria privada, mas a gente teria o controle efetivo, porque os outros controladores são todos controladores privados pulverizados. Nenhum deles consegue controlar 43% das ações e formar um bloco”, explica o dirigente sindical.

Felipe aponta que foi um duro golpe para o Coletivo Nacional dos Eletricitários ver o presidente Lula aceitar um acordo onde a União trocou seu poder de voto por três cadeiras no conselho de administração e uma no conselho fiscal. Na assembleia de acionistas, esfera máxima do poder decisório dentro da empresa, permaneceu em 10%. “Quando uma ADI vai para o STF, o que há é o questionamento sobre a constitucionalidade. O Supremo tem que julgar. Na hora que você faz um acordo, você está assumindo a possibilidade de uma inconstitucionalidade. Esse é o tamanho do absurdo”.

Araújo destaca, ainda, o que foi a “cereja do bolo” do processo recente: o acordo contava com a devolução da Eletronuclear para a União, desobrigando o investimento de cerca de R$ 20 bilhões na empresa. “Essas são questões complicadas, questões que cortam na própria carne, mas precisam ser ditas, precisam ser colocadas”.

Uma ameaça para o futuro

Já em suas colocações finais, Felipe deixou um alerta aos petroleiros. Destacou que o modelo de privatização utilizado na Eletrobras, com a diluição das ações da União, foi usado pela primeira vez na Eletrobras. O mesmo já aconteceu, depois da venda da maior parte do setor elétrico, com a Copel e com a Sabesp, na área do saneamento. Os próximos alvos são óbvios.

“Esse que é o jeito mais absurdo, porém mais rápido de fazer uma privatização é um modelo que pode ser usado no dia em que tivermos um governo mais liberal. A Petrobras e outras empresas de capital aberto estão na mira. Precisamos estar muito atentos a esse modelo e lutar pela retomada e fortalecimento do que ainda há de estatal no setor elétrico brasileiro”, finalizou.

 

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTubetodas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra.

O programa também pode ser assistido pela TVT, Canal do Conde, e é transmitido pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto de destaque: Fernando Frazão/Agência Brasil

 

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