“A existência de futuros torturadores e golpistas tem relação direta com o tratamento que damos a eles hoje”, diz Cezar Britto

Em entrevista ao Soberania em Debate, o ex-presidente da OAB nacional aponta que foram as anistias passadas que gestaram a tentativa de Golpe de 08 de janeiro. E que o que decidirmos agora definirá se teremos que passar por mais um episódio no futuro até aprendermos a lição.
Em um cenário político ainda marcado pelas cicatrizes dos ataques à democracia, a discussão sobre anistia retorna com força ao Congresso Nacional, levantando sérias preocupações sobre o futuro da responsabilização por crimes contra as instituições nacionais. O Projeto de Lei 2858/2022, protocolado antes mesmo dos infames eventos de 8 de janeiro de 2023, inicialmente propunha uma anistia genérica para participantes de manifestações. Contudo, sua tramitação e as articulações da extrema direita buscam agora alargar seu escopo, o transformando em um escudo para proteger aqueles que atentaram e continuam a atentar contra o Estado Democrático de Direito.
Esta manobra, como aponta o advogado César Britto, não é um fato isolado, mas ecoa práticas históricas de autoanistia que visam garantir a impunidade dos poderosos e minar os alicerces da justiça. O advogado trabalhista e ex-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil foi o convidado do Soberania em Debate de 08 de maio, que tratou da “indecente proposta do PL da Anistia” em tramitação no Congresso Nacional.
“Se nós analisarmos a história, nós vamos compreender um pouco a razão da data”, inicia o jurista, traçando um paralelo com a Lei de Anistia de 1979, promulgada ao final da ditadura militar. “O que se dizia ali era: eu sei que a democracia vai chegar, a democracia vai imperar e eu já quero impor uma autoanistia. E essa foi a grande crítica que se fazia na época”. Dr. Brito ressalta que a tentativa atual de anistiar os envolvidos nos atos golpistas, antes mesmo de uma consolidação da resposta institucional, reflete a mesma lógica perversa: a busca por se eximir de responsabilidades futuras, percebendo a fragilidade do momento e a possibilidade de um revés democrático. “Eles perceberam que estavam ali naquela zona cinzenta, preparatórias de golpe, e se faz uma anistia para se autoanistiar já pensando nisso no futuro. Não é coincidência, parece que é uma repetição dessas práticas. Aliás, todos os ditadores fazem leis de anistia em finais dos seus próprios governos para se autoanistiar”, alerta.

A insistência em mecanismos de anistia para crimes que atentam contra a própria democracia revela, segundo o advogado, um profundo descompromisso com os valores republicanos e uma perigosa tolerância com a violência política. “O futuro da tortura, o futuro do torturador, o futuro do golpista tem relação direta com tratamentos que nós damos a ele no hoje. Se nós perdoarmos esses crimes contra a humanidade, aqueles que cometem crimes continuarão seguirão fazendo isso”, aponta Britto, relembrando sua luta à frente da OAB Nacional com o ajuizamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que questionava a interpretação da Lei de Anistia que impedia a punição de torturadores da ditadura. “A história da democracia pressupõe a sobrevivência dela com tratamento que nós damos àqueles que atentam contra ela própria”.

A história se repete como farsa

A decepção com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a  Arguição e Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que poderia ter reescrito parte da história recente do Brasil ao permitir a responsabilização de agentes da ditadura, é um ponto nevrálgico na análise de Britto. Proposta em 2008pela OAB questionava a interpretação da Lei de Anistia (Lei no 6.683/1976). O objetivo era invalidar a interpretação de que a lei abrangia automaticamente os crimes cometidos pelo aparato repressivo durante a ditadura militar. Em 2010, por 7 votos a 2, o STF julgou o pleito improcedente.
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

“Eu não tenho muita dúvida sobre isso. Se a ADPF 153 tivesse sido aceita, talvez não houvesse o 8 de janeiro”. A ausência de uma verdadeira justiça de transição, que punisse os crimes contra a humanidade cometidos durante o regime militar, teria, em sua visão, encorajado a repetição de atos autoritários. “Era preciso, era necessário nós aplicarmos a justiça de transição que não foi aplicada no Brasil. Essa transição de um regime autoritário para um regime democrático. Até porque nós fizemos essa mudança com as mesmas pessoas, aqueles que continuavam nos torturando, continuaram nos governos”. A impunidade, destaca, pavimentou o caminho para que figuras como o ex-presidente Jair Bolsonaro pudessem exaltar torturadores publicamente, como ocorreu durante o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, sem nenhuma consequência.

Juntamente com a ADPF 153, outra ação crucial, a ADPF 158, buscava reparar as injustiças cometidas contra militares que resistiram à ditadura e que, paradoxalmente, continuaram a ser punidos mesmo após a redemocratização. “A Constituição fala que eles recuperariam a patente e a remuneração, mas criaram um regime diferente, um regime especial de militar anistiado, que ele não vai nem pra reserva e nem pra ativa. Ele recebe uma remuneração, mas não tem direito à aposentadoria, não tem direito a médico, não tem direito à pensão à família. Então eles continuaram absolutamente punidos”, aponta o advogado. A rápida rejeição desta ADPF, sob a alegação de ilegitimidade da OAB para a causa, contrasta com a legitimidade universal da Ordem em outras questões, evidenciando, para Brito, como temas sensíveis à estrutura de poder são tratados. “Você vê como esses temas são tratados e é por isso que eu tenho falado muito sobre esse assunto. O 8 de janeiro ocorre porque nós cometemos esses erros, de não compreendermos que não se pode perdoar golpistas”, reitera.
O projeto de lei da anistia em tramitação no Congresso é visto pelo jurista como uma afronta direta à Constituição, que veda anistia para crimes de terror e atentados contra o Estado Democrático de Direito. A tentativa de descaracterizar o 8 de janeiro como um golpe de Estado visa justamente contornar essa vedação constitucional. “A anistia faz parte da prerrogativa do legislativo, está lá expresso. Agora, também a Constituição diz que não poderá ser objeto de graça, não pode ser objeto de anistia alguns tipos de crimes como crimes de terror, como crime de golpe de estado. E quem tá decidindo que é terror e golpe de estado não sou eu, é o órgão constitucional que tem competência para dizer isso, que é o Supremo Tribunal Federal”. Britto enfatiza que a segurança das futuras gerações depende da firmeza com que a sociedade trata aqueles que cometem crimes contra a humanidade. “A segurança do meu filho e do meu neto está em saber que jamais perdoaremos aqueles que cometem crimes contra a humanidade. Estamos protegendo gerações futuras”.

Conciliação para a impunidade

O histórico de concessões e a morosidade do sistema de justiça ao lidar com o legado autoritário também são duramente criticados. Casos como a não abertura dos arquivos da ditadura, a não homologação da anistia para os trabalhadores do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro por pressão da própria Marinha, e as idas e vindas na anistia dos cabos da Aeronáutica demonstram, segundo Dr. Brito, uma política persistente de conciliação com setores golpistas. “Nós sempre buscamos conciliar, o governo sempre procurou conciliar, conciliar com os militares que deram o golpe, que têm mentalidade de golpe. E o resultado foi o quê? 8 de janeiro”.
Ato contra PL da Anistia em frente ao busto de Rubens Paiva. – Divulgação/Coalizão Pacto pela Democracia

A recusa dos envolvidos nos atos de 8 de janeiro em participar de um curso sobre democracia, uma das condições para a pena alternativa à prisão, é emblemática dessa mentalidade. “O que que simboliza isso? Não aprender a lição, continua com a mentalidade golpista”, analisa Britto, destacando que a invasão da Praça dos Três Poderes foi gestada e instrumentalizada pelo governo Bolsonaro. Os anos governo anterior são descritos como um período de “tensionamento o tempo todo de desmonte das instituições brasileiras”, onde a retórica antidemocrática e as políticas de aniquilação de direitos, como os ataques à CLT e o desprezo pela vida durante a pandemia, se tornaram a norma. “Foi um trabalho de quatro anos nesse sentido, focado no desmonte de direitos. Eu chamo esse período de tempo das máscaras caídas, quando as máscaras civilizatórias caíram e as pessoas passaram a se assumir exatamente como eram com seus racismos, com suas misoginias. Só que a diferença é que eram oficializadas como política de governo”. Essa normalização do discurso de ódio e das práticas autoritárias encontra paralelos preocupantes no cenário internacional, como o avanço da extrema direita nos Estados Unidos.

“Precisamos aprender com as lições do passado. Foi a conciliação no passado que gerou o 8 de janeiro. A conciliação e a anistia dada a Juscelino não evitou o Golpe de 64. Eles [os participantes do 8 de janeiro], inclusive, se recusam a aprender. Então, me parece que não é um momento de conciliação”, destaca Britto. No papo com Beth Costa e Jorge Folena, Britto fala, ainda, do caráter político das decisõess do STF, da perseguição contra o deputado Glauber Braga, da perseguição do fascismo a grupos marginalizados e da importância de eliminar do exército e demais forças armadas a ideia de que são um Poder Moderador.

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTubetodas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra.

O programa também pode ser assistido pela TVT, Canal do Conde, e é transmitido pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto em destaque: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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