Por Jorge Folena*
No meu livro “Terras indígenas: a indiferença dos Tribunais no Brasil” demonstrei como o Supremo Tribunal Federal consentiu durante décadas com o processo colonial de extermínio dos povos originários no país.
A meu juízo, o julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, abriu o caminho para a imposição de um indevido marco temporal, que estabeleceu que os indígenas teriam direito à retomada das suas terras ancestrais somente se estivessem na posse delas ou lutando para sua retomada no dia 05 de outubro de 1988, data de promulgação da atual Constituição do país, naquilo que foi estabelecido pela corte, de forma retórica, como uma “chapa radiográfica”.
Nesse mesmo julgamento, o STF cunhou também a expressão “constitucionalismo fraternal”, nada apropriada e até mesmo cínica, diante da naturalização dos muitos episódios de remoção forçada, mediante violência física e cultural, dos ocupantes de terras originárias historicamente reconhecidas como de direito dos povos indígenas, que não puderam, contudo, resistir à brutalidade dos invasores até a data limite instituída pelo Tribunal.
Em razão disso, depois de décadas de crueldade e assassinatos de indígenas pelos invasores de suas terras ancestrais, em setembro de 2023, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.107.365, após um grande debate o STF fixou o tema 1.031, que dispõe no seu item III que “a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal em 05 de outubro de 1988”.
O Tribunal responsável pela interpretação da Constituição proferiu sua decisão, estabelecida em grau de repercussão geral, isto é, a ser seguida por todos. Porém, em ato contínuo, ela foi desafiada pelo Parlamento brasileiro, que, a despeito do veto presidencial, aprovou a Lei 14.701/2003, que fixa o famigerado marco temporal, na contramão do que dita a Constituição.
Sem dúvida, o Parlamento brasileiro radicalizou sua posição política contra o Supremo Tribunal Federal, ao qual cabe, precipuamente, a guarda da Constituição, e, com isso, provocou uma grave crise institucional, que vem se agravando pela proposição de outros atos de caráter provocativo, a exemplo das propostas de emenda constitucional para delimitar o tempo de mandato de ministros daquele Tribunal e para impedir a concessão de medidas liminares, por único ministro, em determinados casos; restando evidente a tentativa de aprofundamento de um conflito institucional entre poderes.
A referida lei do marco temporal, a meu ver inconstitucional, foi questionada no STF, porém o ministro Gilmar Mendes, relator dos processos, não deferiu medida liminar para suspensão dos efeitos da lei, apenas mandou suspender os processos judiciais em curso que envolvam discussão a respeito do tema e determinou uma audiência entre o parlamento, o governo e os povos indígenas para uma conciliação praticamente impossível de ocorrer, uma vez que os interesses dos parlamentares (muitos ruralistas e defensores do denominado agronegócio) diferem do direito dos povos originários de retomarem suas terras ancestrais, sendo estes os mais fragilizados na questão, que envolve grandes interesses econômicos de invasores de terras e mineradoras.
Com efeito, de modo mais ou menos previsível, a semana que antecedeu o início da referida audiência de conciliação (05 de agosto de 2024) foi marcada por atos de extrema violência contra os índios, particularmente os Guarani-Kaiowás, no Mato Grosso do Sul, que estavam retomando seus territórios ocupados irregularmente.
Os grupos que atacam os indígenas são os mesmos que defendem e apoiam o ex-presidente, que, antes de iniciar sua companha eleitoral de 2018, compareceu a comício em Roraima onde afirmou que “índio tinha direito a terra, mas a sete palmos abaixo dela”. Esse personagem, que precisa prestar muitas contas à justiça brasileira, foi o mesmo cujo desgoverno promoveu o genocídio contra os ianomamis, conforme apurado logo após a posse do presidente Lula em seu terceiro mandato.
O governo de Jair Bolsonaro não teve nenhum apreço pelos mais vulneráveis do país e isto ficou claro desde seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 2019, quando manifestou que, com ele, estava terminada a era do politicamente correto.
Os povos indígenas sempre foram vistos como inimigos pelos fascistas brasileiros. O ex-presidente, valentão com os fracos (mas bastante generoso com os muito ricos), sempre deixou manifesto o seu desejo de expropriar as terras dos povos indígenas para servirem de pasto e para exploração pelo agronegócio, além do garimpo de pedras preciosas e a mineração por empresas estrangeiras.
É importante recordar que, em 10 de maio de 2021, assistimos à selvageria da invasão de terra dos ianomâmis na comunidade Palimiú, em Roraima, por garimpeiros armados, que atiravam contra mulheres e crianças. Foram imagens chocantes, confirmadas por agências de checagem de notícias à época, mas que no governo de Bolsonaro se naturalizaram, pois o ex-presidente, com seu gesto de arma em punho, incentivava a matança e a destruição de tudo que possa representar resistência e luta por uma vida digna.
Enquanto os brasileiros se preocupavam com a pandemia da COVID-19, em 2020, o governo do ex-presidente passou a “boiada”, conforme demonstram as notícias abaixo:
“Levantamento mostra avanço da mineração em terras indígenas: Agência do governo autoriza 58 requerimentos minerários em terras indígenas da Amazônia, algo proibido pela Constituição. Cenário é uma ameaça real a regiões que deveriam ser protegidas” (DW, 26 de novembro de 2020)
“Terra indígena mais desmatada do Brasil tem 6º ano seguido de alta. (…) Cachoeira Seca, no Pará, terra indígena mais desmatada do Brasil, tem uma taxa de perda de floresta que cresce há seis anos. Os dados de desmatamento foram contabilizados entre julho de 2019 e agosto de 2020” (Portal G1, em 01/12/2020).
Assim, as atitudes debochadas e agressivas do ex-presidente caracterizavam seu desrespeito à Constituição Federal, que procurou assegurar aos povos indígenas o direito de posse sobre suas terras ancestrais e preservou seu direito de exploração para atender as suas necessidades fundamentais, como já reconhecido pelo STF no seu tema 1.031.
Território indígena não é lugar para exploração econômica; muito menos deveria ser palco para assassinatos e massacres promovidos por garimpeiros e grileiros de terra, incentivados sistematicamente ao longo do governo do ex-presidente; que ainda hoje segue influenciando seus seguidores fascistas a desrespeitarem os povos indígenas, a floresta e o meio ambiente.
A questão da ocupação das terras indígenas é consequência direta da visão colonialista persistente em pleno século XXI, que, por sua vez, decorre de um longo processo histórico de violência chancelada pelo Estado, que segue expulsando os povos originários, espoliando suas riquezas e assassinando seus integrantes. Penso, então, que o STF não deveria propor nem buscar essa “conciliação”, impossível, com os assassinos e expropriadores dos territórios ancestrais dos povos originários, legítimos donos de toda a terra brasilis.
*Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.