Na véspera das eleições municipais, a apenas três dias da abertura das urnas, o Soberania em Debate, programa do projeto SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro – Senge RJ, recebeu a socióloga e especialista em Gestão e Negócios de Impacto Social, Carmem Valdez, coordenadora do trabalho do Instituto Data ANF. Em pauta, o voto das periferias nas eleições municipais, revelado em pesquisa recente.
Entre os pontos investigados pelo levantamento apresentado por Carmem estavam a neutralização de princípios partidários, substituídos por uma identificação com vínculos pessoais; a influência de lideranças nacionais, como Lula e Bolsonaro, nos votos municipais e os impactos das emendas parlamentares, direta ou indiretamente, a partir da execução de ações em municípios de origem dos deputados federais.
Os novos coronéis
Os coronéis, que por muito tempo definiram os resultados das urnas através de seus currais eleitorais, seguem presentes. O domínio das massas, nas periferias, se sustenta sobre um tripé de difícil enfrentamento: o movimento neopentecostal, as milícias articuladas com a política institucional e o poder paralelo do tráfico de drogas.
“As milícias sintetizam esse novo coronelismo. Ela é a representação não oficial de um braço do Estado que exerce poder junto à população dos territórios. Elas se somam a um poder local de natureza religiosa, sobre a qual grande parte da população deposita seu valor de existência. O tripé é completado pela condição armada, já vinculada ao poder local do tráfico. São os nossos novos coronéis, que começam a ser institucionalizados a partir de algumas legendas partidárias e passam a ascender às instituições formais de poder do Estado brasileiro em todas as suas esferas”, apontou Carmem.
Segundo a pesquisadora, esse domínio local foi um desafio para a própria realização da pesquisa. “É difícil o acesso a essa população. Tivemos que, em um primeiro momento, romper a resistência que vinha do entendimento que a pesquisa tinha um propósito que ia de encontro aos interesses da população, mostrando que, na verdade, a proposta era de escuta sobre os anseios, visão de mundo e interesse dela. Foi necessário enfrentar o poder local, muitas vezes em articulação com entidades dos territórios, como as associações de moradores. Também ficamos alertas para qualquer direcionamento do poder local na participação das pessoas na pesquisa”, contou.
Conveniência e influências nacionais
A pesquisa apontou que, nas periferias, resultados como a absoluta tranquilidade de Eduardo Paes na prefeitura do Rio têm como base um voto que considera a própria sobrevivência. “Essa população tende a apresentar um posicionamento conveniente para o atendimento de suas necessidades objetivas. Paes, que chegava a 58% nas favelas cariocas, representava a manutenção de um estado de coisas que segue atendendo, ainda que precariamente, as necessidades de sobrevivência desta população. Mas indica, também, um processo ainda superficial de resistência e tomada de consciência, de reflexão crítica frente ao movimento neofascista de extrema-direita no país”, destacou.
A baixa influência de Bolsonaro sobre o voto do carioca para a prefeitura é prova disso: os resultados da pesquisa mostram um descolamento do bolsonarismo da figura de Bolsonaro, a exemplo do que ocorre em São Paulo, onde surge um bolsonarismo entendido como “moderado” em contraposição a um radical. “Há, no Rio de Janeiro, um processo dentro dos territórios de favela, de tomada de consciência e enfrentamento de células neofascistas de ultradireita. A favela pode ser o caminho de resistência”, destaca a socióloga.
Juventude e trabalho de base
Um fenômeno destacado pelos números, que mais tarde se confirmou nos resultados das urnas, é a identificação da juventude periférica com a responsabilidade de fortalecer e transformar os espaços, principalmente através da cultura. A formalização vem crescendo com o objetivo de acessar recursos públicos através de editais e leis de incentivo, vetores de empoderamento local dos sujeitos.
“Na pesquisa eleitoral de intenção de voto, a tendência maior da juventude periférica – usurpada de direitos e de oportunidades de existência plena – é de se aliar a partidos de esquerda e centro-esquerda. Fizemos a pesquisa no Rio, na pré-campanha, em julho. Tarcísio Motta (PSOL) estava mais bem posicionado. E havia um clima favorável para que Tarcísio e os demais candidatos do campo progressista pudessem atuar dentro das favelas: havia o percentual de indecisos, de pessoas que ainda tendiam a afirmar o não voto. Então, o trabalho de base dentro dos partidos precisa ser fortalecido entre os períodos eleitorais, para a formação de novos quadros”, destacou.
Carmem destacou que Maíra do MST vinha despontando como uma jovem muito forte neste cenário e que devia ser exemplo para o fortalecimento e formação de quadros de juventude periférica. Ela estava certa: dias depois, Maíra foi eleita vereadora.
“É um fenômeno visível. O movimento negro, periférico, que está nas redes e vem ocupando a mídia, precisa ter a sua voz em mais espaços de respeito. Temos que fazer essas vozes serem legitimadas. Isso não significa negar o desafio que é enfrentar o avassalador crescimento dos movimentos neopentecostais aliados à milícia e à política institucional. É um enfrentamento de trincheira, não é amador. A gente não pode dar brecha para perder essa juventude que está mobilizada para transformar a nossa estrutura social e romper as condicionantes de classe”, evidenciou a pesquisadora.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto: Tânia Rego/Ag.Brasil