Arcaico e perverso, sistema tributário brasileiro é desafio histórico que precisa ser enfrentado

Sem avanços reais no sentido de uma tributação mais justa, uma Reforma Tributária tem potencial para transformar o sistema arrecadatório e ampliar a distribuição de renda, mas também pode dar em nada; Por enquanto, os avanços são insuficientes

Apesar das muitas conquistas políticas, jurídicas, sociais, culturais e econômicas representadas pela Constituição Cidadã de 1988, o sistema tributário brasileiro, mesmo com um capítulo dedicado especialmente a ele na Carta Magna, não avançou naquele momento histórico. Nenhuma mudança significativa foi feita na lógica da tributação, que seguiu sendo regressiva, penalizando cruelmente a base da pirâmide socioeconômica.

Entrevistado do Soberania em Debate do dia 13/06, o economista Paulo Kliass, especialista de carreira em Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo Federal, destacou que o sistema carrega o que chama de “perversidades”.

“A incidência da nossa tributação guarda características fundamentais do nosso passado colonial escravista. As classes dominantes sempre se acharam donas do país, de seu povo e recursos naturais, se eximindo de qualquer obrigação perante o coletivo. E essa característica permaneceu, não muda”, apontou Kliass.

O sistema regressivo já é um problema bastante conhecido e consensuado entre economistas: aqueles que têm renda e patrimônio menores pagam, proporcionalmente, mais em impostos que aqueles que ocupam o topo da pirâmide. Quanto mais rico, menor é a contribuição para a formação do chamado “bolo tributário”. Com uma das menores alíquotas máximas do mundo, em um país profundamente desigual, quem ganha R$ 6 mil responde à mesma carga tributária de quem ganha R$ 200 mil por mês.

“Outra perversidade é o imposto sobre patrimônio. Os bilionários brasileiros, os 0,01% mais ricos, não pagam absolutamente nada de um imposto que é cobrado no mundo inteiro. O imposto sobre grandes fortunas está na nossa constituição, à espera de uma lei complementar que estabelecerá as condições de funcionamento desse imposto. Não é nada complexo: estabelecermos uma alíquota para os tributos daqueles que ganham acima de x bilhões, mas em 36 anos, o debate não foi feito”, destacou o economista.

Projeto de retrocesso

Se faltaram avanços no tema, sobram retrocessos. O governo Fernando Henrique Cardoso deu um passo à frente na construção de um sistema injusto: a isenção da tributação de lucros e dividendos.A partir dali, o acionista que recebe bilhões em dividendos de empresas privadas ou públicas não paga nada.

“As classes dominantes, não satisfeitas com o sistema regressivo, avançam sobre conquistas históricas e nos levam ao que vivemos hoje, debatendo o piso da saúde e da educação, a desindexação da previdência do salário-mínimo.Não contentes com o pouco imposto, eles têm esse discurso de custo Brasil alto. Com ele, bateram na CLT e culparam o trabalho, mas a questão é tributária. Hoje, as empresas têm departamentos enormes dedicados ao que eles chamam de planejamento tributário, uma forma elegante de colocar profissionais altamente qualificados para encontrar brechas, algumas legais, outras questionáveis, para não pagar imposto. E quem tem que contribuir com grande parte do bolo é a maioria da população. Há sociedades em que a classe dominante está mais disposta a participar desse grande pacto social de arrecadação de recursos para dar conta da sobrevivência da sociedade. Elas participam de forma menos egoísta desse arranjo, contribuindo com mais impostos”, destacou Kliass.

Há uma reforma em curso?

“Quando escuto a palavra reforma, no Brasil, fico com um pé atrás: pode ser tudo ou nada. Ela terá que ser costurada em cima de interesses muito contraditórios”, apontou Kliass. Para ele, há três grandes barreiras neste debate. A primeira delas, a mais óbvia, é o contraditório do capital x trabalho. Mas vai além, e ultrapassa o campo ideológico. Mesmo dentro das classes dominantes, há interesses contraditórios. Setores como o das atividades agrícolas, industrial, de serviços, financeiro etc, precisam chegar a consensos que parecem distantes.

Por fim, há o Pacto Federativo, explicou Kliass: “O capítulo dedicado ao sistema tributário na constituição atribui competência para os três níveis da federação. Há os tributos da União, dos estados e Distrito Federal e municípios. Os prefeitos fazem pressão, os 27 governadores, também. O ministério da Fazenda quer que a União tenha seus recursos e tenta coordenar esse desenho”, destacou.

Pressionada por esses atores, a aprovação da Emenda Constitucional 132, da Reforma Tributária, perpetuou a história: modernizou o sistema arrecadatório, mas não mexeu em nenhum dos pontos mais urgentes, heranças do Brasil colônia e da era FHC. “Era impossível colocar na mesa os interesses da União, dos estados, dos municípios e chegar a um modelo de simplificação. E essa simplificação só será plena, se for, em 2027. Foi preciso costurar as mudanças de forma progressiva. Foi uma tarefa difícil, mas que foi aprovado”, conta Kliass.

Ao falar sobre a regulamentação, o economista aponta os avanços possíveis, determinados pelas correlações de forças no Congresso e pelas pressões políticas de estados e municípios. Kliass apontou o imposto unificado federal – o CBS – e o estadual e municipal – o IBS, resultantes de uma tentativa de criar um IVA (Imposto de Valor Agregado), usado na maioria dos países, mas inexequível por aqui graças às pressões do Pacto Federativo.

A criação do Imposto Seletivo é uma iniciativa positiva, segundo Kliass. Também usado em diversos países, o novo imposto incidirá sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio-ambiente. Ele alerta, no entanto, que as emendas podem abrir brechas na lei. “Abrir uma excessão para um setor pode fazer passar a boiada. Todos os setores querem a isenção. Espero que não aconteça”, destacou.

Outro ponto positivo conquistado pela PEC  é a criação do Comitê Gestor do IBS, um espaço onde estados e municípios representados discutirão como o fundo será dividido entre eles, de acordo com inúmeras métricas que buscam a distribuição equânime dos recursos.

Na entrevista, Klyass fala, também, dos pontos mais sensíveis a serem observados pela sociedade civil organizada para que não permitam que o que foi conquistado seja efetivamente aplicado. Confira!

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.

 

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Foto: Katemangostar/Freepik

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