Fonte: Carta Capital
Por Bia Barbosa*
O impeachment foi aprovado e a presidenta Dilma Rousseff foi definitivamente afastada. Ao longo dos últimos meses, analisamos por diversas vezes o papel que os maiores meios de comunicação desempenharam na legitimação deste impedimento, na desconstrução e negação dos argumentos da defesa de Dilma e na formação de uma parcela da opinião pública contra o governo legitimamente eleito nas urnas.
Nas últimas 48 horas, tal postura não se alterou, consolidando uma linha editorial que já rendeu livros e certamente será objeto de muitas pesquisas no futuro. Uma vez mais na história brasileira, a urgência da democratização dos meios, de diversidade e pluralidade midiática se confirmou, sem as quais nossa democracia seguirá em permanente risco. Explicamos por quê.
A censura ao depoimento de Dilma
Diferentemente do que ocorreu quando da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados, a reta final da votação no Senado, incluindo o depoimento inicial da presidenta, não foi transmitida ao vivo pela TV aberta. Não se suspendeu a transmissão de novelas, cultos nem mesmo de programas de entretenimento.
Enquanto Dilma fazia seu discurso, a principal emissora do país considerou mais relevante ensinar dotes culinários à população. A transparência ao debate exporia as fragilidades da acusação, explicitaria e confirmaria a essencialidade do julgamento político, “pelo conjunto da obra” – e não jurídico – pelos senadores.
Assim, a imensa maioria do povo brasileiro, que não tem acesso à TV por assinatura, não teve seu direito de acesso à informação garantido para que pudesse, livremente, formar sua opinião sobre o interrogatório de Dilma. Teve que se contentar com a seleção discricionária e com a narrativa editada pelos meios daquilo que havia ocorrido ao longo de 14 horas no dia 29 de agosto.
Nem mesmo a TV Brasil, emissora pública de comunicação, retransmitiu a íntegra das discussões. O princípio constitucional que rege o funcionamento das concessões públicas de rádio e TV foi, assim, também uma vez mais, violado.
A edição da reta final dos debates no Senado
O depoimento de Dilma foi considerado firme e consistente por dezenas de juristas, advogados, jornalistas. Nos corredores do Congresso, cresceu o receio por parte da oposição de que a fala da presidenta aumentasse as chances da defesa conseguir votos contra o impedimento. Coube então, à imprensa, reforçar a tese dos opositores de Dilma de que ela não havia “respondido aos questionamentos” da acusação.
No Jornal Nacional da noite do dia 29, os trechos escolhidos para “resumir” o dia foram os pouquíssimos em que a depoente foi menos clara e objetiva em suas respostas. A jornalista Zileide Silva, ao vivo do plenário, reforçou que a presidente não havia acrescentado nada de novo nem respondido às perguntas.
Na GloboNews, Renata LoPrete chegou a afirmar que “os senadores perguntam maçã e ela responde banana”, “martelando a tese do golpe”. Chegou-se a comparar a presidenta Dilma com Rolando Lero, personagem humorístico que inventava respostas quando questionado por um professor. O escárnio não teve limites.
A capa do jornal O Estado de S.Paulo, do dia 30, mostra uma presidenta derrotada sob a manchete “Juízo final”, quando a imagem que todos os que acompanharam as 14 horas de depoimento foram de uma presidente convicta de sua posição e de seus atos. As imagens se repetiram em O Globo.
Inúmeros comentaristas preferiram destacar que “o discurso de Dilma foi apenas um registro histórico para o documentário” sobre o impeachment que está sendo gravado, desqualificando os argumentos da defesa e a importância das respostas da presidenta para o julgamento ainda em curso.
O jogo do fato consumado
A maior parte da imprensa não apenas comprou o discurso da acusação e de partidos como o PSDB de que a Constituição foi desrespeitada nos atos do governo Dilma. Num contexto em que um número de senadores ainda suficiente para evitar o impeachment não havia declarado sua posição final, os comentaristas dos canais por assinatura seguiram jogando água num dos lados do moinho, afirmando que o impedimento estava definido e chegando a fazer chacota da busca, pela defesa, da mudança de voto de alguns parlamentares.
“Este já ganhou um cargo, não tem mais perigo de mudar de lado”, afirmou um apresentador da mesma GloboNews. Na emissora, Gerson Camarotti ressaltou que o processo não teria reversão. Num contexto em que muitos senadores, independentemente do mérito, querem votar com o lado “vencedor” da disputa, o discurso midiático de que o jogo está definido contribui, sim, para a própria definição desses votos.
A agenda econômica no meio do julgamento
A utilização da crise e dos indicadores econômicos atuais na sustentação dos argumentos dos senadores pró-impeachment foi constante, mesmo que tais questões não sejam provas para comprovar a acusação de crime de responsabilidade por parte da presidenta Dilma. No Parlamento, a retórica cabe. Mas a imprensa também ajudou para isso.
Ao longo dos últimos dias, toda a cobertura do julgamento foi permeada por matérias e comentários de jornalistas que, por um lado, destacaram os problemas econômicos do país desde 2014 e as perspectivas de melhora na economia numa gestão Michel Temer.
No canal por assinatura do principal grupo de comunicação, a expressão “mundo paralelo” foi usada à exaustão para caracterizar as respostas de Dilma aos questionamentos dos senadores. “A percepção dela sobre causas e consequências é invertida em relação à maioria dos analistas”, afirmou Dony De Nuccio. “Dilma não fez o dever de casa. Todos os economistas já alertavam e acabou levando a isso. É uma realidade paralela”, completou Camarotti.
No Bom Dia Brasil, Alexandre Garcia chegou a repetir os argumentos de Janaína Paschoal e afirmar que é a elite econômica que está defendendo o governo Dilma, citando a senadora Katia Abreu e o presidente da CNI. Nenhum analista econômico com visão diversa foi convidado a opinar sobre o tema.
A criminalização permanente
Como não foi possível invisibilizar os inúmeros protestos e atos em defesa da democracia que seguiram ocupando as ruas nos últimos dois dias – ao contrário das manifestações pró-impeachment, que desapareceram –, os principais canais de TV optaram por mostrar os atos que resultaram em “confronto” com as forças de segurança.
O destaque foi para as manifestações em São Paulo, fortemente reprimidas pela Polícia Militar do governo Alckmin e que geraram imagens “de violência” nas ruas. As dezenas de outros atos pelo país receberam flashes quase instantâneos, pois teriam sido “bem menores que as anteriores”.
O noticiário, assim, ratificou sua tese criminalizadora dos movimentos sociais, tratados sempre com “baderneiros e arruaceiros”, como definiu o senador Aloysio Nunes em seu discurso no dia 30.
A cereja criminalizadora veio com o encadeamento, sempre presente, da notícia sobre a suspensão da isenção de imposto do Instituto Lula pela Receita Federal, reforçando o clima de indignação contra o Partido dos Trabalhadores e a tese do impeachment como mecanismo de combate à corrupção. “É um crime continuado”, sentenciou Merval Pereira.
Nenhuma referência às investigações contra Eduardo Cunha, iniciador do processo de impeachment, e contra Michel Temer, seu direto beneficiário, foram constatadas.
Lá fora, outro jornalismo
Esta semana, os editoriais do Le Monde (França) e The Guardian (Inglaterra) foram explícitos ao denunciar a farsa vivenciada no Brasil. No El País (Espanha), foram diversos os artigos explicando o por que da acusação de golpe. Nesta quarta, o The New York Times (Estados Unidos) cravou: “O impeachment mudará o governo e não a política”.
A imprensa internacional, como fez ao longo dos últimos meses, seguiu mostrando fatos e opiniões diferentes, silenciadas na mídia brasileira. Nenhum mérito nisso. Trata-se de ética jornalística, algo que passou longe da cobertura do impeachment.
Chegamos ao final deste processo histórico com inúmeras consequências e danos à nossa democracia. Os retrocessos serão muitos, inclusive no campo das comunicações, para a continuidade de um sistema público de mídia, para a existência dos meios populares e comunitários, para a gestão com base no interesse público dos serviços de telecomunicações, internet e radiodifusão.
Na parte que nos cabe deste debate, seguiremos defendendo mais diversidade e pluralidade, mais liberdade de expressão. Enquanto ela não for para todos, novos e tristes episódios como este poderão se repetir, com o apoio também daqueles – incluindo a grande mídia – que, definitivamente, escolheram um lado para estar.
* Bia Barbosa é jornalista, integrante da coordenação do Intervozes e secretária geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Colaboraram Ramênia Vieira, Raquel Dantas, Ana Cláudia Mieke, Mônica Mourão e Eduardo Amorim, todos jornalistas e integrantes do Intervozes.
Fonte: Carta Capital