Por Wladimir Pomar*
Em artigo na revista Carta Capital, de 15/03/2017, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo afirma que “há, no Brasil, a tradição de ignorar a experiência alheia ou, na melhor das hipóteses, de interpretá-la levianamente”. E cita a China como exemplo, onde “a ação estatal cuidou dos investimentos em infraestrutura e utilizou as empresas públicas como plataformas destinadas a apoiar grandes conglomerados industriais preparados para a batalha da concorrência global. O sistema financeiro abasteceu crédito em condições adequadas de prazo e custo às empresas e aos “setores escolhidos” como prioritários pelas políticas industriais. O circuito virtuoso ia do financiamento para o investimento, da produtividade para as exportações, daí para os lucros e dos lucros para a sustentação da dívida”.
O “resto”, conclui Belluzzo, “é conversa de bêbado”. “Conversa” que tem prevalecido na imprensa e em meios acadêmicos ocidentais desde que a China ingressou nos reajustamentos e nas reformas de seu socialismo, em 1978. O crescimento econômico chinês seria uma “bolha”, incapaz de sustentar um crescimento de 10% ao ano; os bancos chineses teriam criado uma bolha financeira e uma bolha imobiliária que tendiam a explodir; a queda do ritmo de crescimento para 7% ao ano demonstraria que a China ingressaria na depressão… As “conversas de bêbados” sobre a China são infindáveis.
Por outro lado, explicar o fenômeno chinês não é simples. A China não se formou como nação há pouco mais de 500 anos. Ela evoluiu do escravismo para o feudalismo, e constituiu uma nação feudal centralizada há mais de 2500 anos. Apesar, ou por causa disso, os feudais a impediram de continuar a aventura marítima mercantilista iniciada no século 15, que poderia levá-la ao capitalismo antes da Inglaterra. Tal impedimento a tornou fraca para enfrentar a expansão colonial das potências industriais capitalistas entre os séculos 16 e 20. Mas, como uma contradição viva, fez emergir uma revolução “socialista” numa China que sequer sofrera as dores e as alegrias do modo capitalista de produção em seu solo.
Esse “socialismo” realizou a reforma agrária, erradicou as endemias rurais, estabeleceu o monopólio estatal e o planejamento macro e micro sobre o mercado, empreendeu a industrialização básica, estabeleceu o trabalho coletivo no campo, e universalizou entre sua população as “quatro garantias” (alimentação, roupa, moradia e emprego) e os “três bens” (bicicleta, rádio e máquina de costura).
Apesar disso não superou a escassez com que se debatia seu povo. 30 anos depois de instaurado, o “socialismo chinês” viu sua população crescer de 600 milhões para 1,1 bilhão de pessoas, das quais 400 mil ainda viviam na pobreza e 700 mil se encontravam abaixo daquela linha. O pleno emprego, realizado pela fórmula de três pessoas para cada posto de trabalho, embora impedisse o aumento da miséria, funcionava como um entrave à produtividade. E o trabalho coletivo no campo não conduzira ao esperado aumento da produção agrícola.
Foi tal realidade que levou a China, após passar pela tormentosa tentativa de superar tais problemas através de uma “revolução cultural”, a compreender que seu socialismo só poderia florescer ao cumprir a missão histórica de desenvolver as forças produtivas, que cabia ao capitalismo. Realizar esse processo, sem retroceder das conquistas de sua revolução, combinando a ação do mercado com instrumentos estatais de intervenção, orientação e disputa, tem sido o caminho da “reforma e abertura” trilhado pela China desde 1978.
Atualmente, a China é um país altamente industrializado, com mais de 200 milhões de trabalhadores industriais. Dos seus 1,4 bilhão de habitantes, uns 20 milhões ainda estão abaixo da linha da pobreza e 500 milhões ainda são pobres. Mas 850 milhões já vivem um padrão de classe média. Em outras palavras, ocorreu um gigantesco salto econômico e social, apesar dos vaticínios catastróficos dos “bêbados”.
Como ocorreu tal “salto” no curto espaço de menos de 40 anos? Isso já não é “conversa de bêbado”. É assunto para estudo.
*Wladimir Pomar é profissional de marketing, geógrafo, professor e técnico agropecuário. Ele será um dos professores do curso “América Latina no sistema mundial – Integração regional e estratégias de desenvolvimento”. Saiba mais aqui.