Fonte: Teoria e Debate
Apesar da proximidade cronológica, parece razoável observar que o estopim para as manifestações populares que estão ocorrendo no país foi o aumento das tarifas do transporte coletivo e a repressão violenta da polícia (vitimando, inclusive, jornalistas no exercício de sua atividade profissional) – não só à primeira passeata realizada em São Paulo, mas também à manifestação realizada antes da abertura da Copa das Confederações, em Brasília. A partir daí, um conjunto de insatisfações que vinha sendo represado explodiu.
A primeira reação da grande mídia, bem como das autoridades públicas, foi de condenação pura e simples das manifestações que, segundo eles, deveriam ser reprimidas com ainda maior rigor. No entanto, à medida que o fenômeno se alastrou, autoridades e mídia alteraram a avaliação inicial.
A grande mídia, então, passa a cobrir os acontecimentos como se fosse apenas uma observadora neutra, que nada tem a ver com os fatos que desencadearam – para o bem ou para o mal – todo o processo.
Centralidade da mídia
Nas sociedades contemporâneas, apesar da velocidade das mudanças tecnológicas, sobretudo no campo das comunicações, a centralidade da mídia é tamanha que nada ocorre sem seu envolvimento direto e/ou indireto. Qual teria sido esse envolvimento no desencadeamento das atuais manifestações?
Um primeiro aspecto chama a atenção. Pelo que se sabe as manifestações têm sido convocadas por meio de redes sociais. Isto é, através de um sistema de comunicação independente do controle da grande mídia.
Na verdade, a se confirmar que a maioria dos participantes é de jovens (em Brasília, um dos “convocadores” da “Marcha do Vinagre” tem apenas 17 anos), trata-se de um segmento da população que se informa prioritariamente pelas redes sociais na internet e não pela grande mídia – jornais, revistas, radio, televisão.
Apesar disso, um aspecto aparentemente contraditório, mas fundamental – revelado inclusive em cartazes dispersos nas manifestações – é que os manifestantes se consideram “sem voz pública”, isto é, sem espaço para expressar e ter a voz ouvida.
Desnecessário lembrar que a grande mídia ainda exerce, na prática, o controle do acesso ao debate público, vale dizer, das vozes que se expressam e são ouvidas.
Além disso, a cultura política que vem sendo construída e consolidada no Brasil, pelo menos desde que a televisão se transformou em “mídia de massa” hegemônica, tem sido de desqualificação permanente da política e dos políticos. E é no contexto dessa cultura política que as novas gerações estão sendo formadas – mesmo não se utilizando diretamente da velha mídia.
Emerge, então, uma questão delicada.
A mídia e o system blame
Independentemente das inúmeras e verdadeiras razões que justificam a expressão democrática de uma insatisfação generalizada por parte de parcela importante da população brasileira, não se pode ignorar o papel da grande mídia na construção dessa cultura política que desqualifica sistematicamente a política e os políticos. E mais importante: não se pode ignorar os riscos potenciais para o regime democrático da prevalência dessa cultura política.
Recorri inúmeras vezes, ao longo dos anos, a uma arguta observação da professora Maria do Carmo Campello de Souza (já falecida) ao tempo da transição para a democracia, ainda no final da década de 1980.
Em capítulo com o título “A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles”, publicado em livro organizado por Alfred Stepan Democratizando o Brasil (Paz e Terra, 1988), ela discute, dentre outras, a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas, afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença ou ausência do system blame (literalmente, “culpar o sistema”), isto é, a avaliação negativa do sistema democrático responsabilizando-o pela situação.
Citando especificamente os exemplos da Alemanha e da Áustria na década de 1930, lembra Campello de Souza que “o processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem capazes de impedir a ruptura”.
A análise da situação brasileira, há mais de duas décadas, parece mais atual do que nunca. A contribuição insidiosa da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à consolidação democrática. Vale a pena a longa citação:
A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo linguístico sistemático sobre o “discurso adversário” em relação à democracia, expresso pelos meios de comunicação. Parece-nos possível dizer (…) que os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (…). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (…)
O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…). (pp.588-9, passim).
Avanços e riscos
As manifestações populares devem, por óbvio, ser vistas por aqueles em posição de poder como uma oportunidade de avançar, de reconsiderar prioridades e políticas públicas.
Do ponto de vista da grande mídia, é indispensável que se reflita sobre o tipo de cobertura política que vem sendo oferecida ao país. Encontrar o ponto ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo, contribuir para o fortalecimento e a consolidação democrática, não deveria constituir em objetivo da grande mídia? A quem interessa a ruptura democrática?
Apesar de ser um tema delicado e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental que se considere os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária da política e dos políticos e os riscos de ruptura do próprio sistema democrático.
A ver.
Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros