Aula Inaugural do Curso André Rebouças comemora conquistas e planeja avanços na luta contra o racismo e o elitismo na engenharia

Com o aumento de 30% de aprovados na disciplina de Cálculo I na UFRJ, Coletivo Força Motriz e Senge RJ promovem aula magna com apoiadores do projeto para celebrar resultados, receber novos alunos e pensar os próximos passos da construção coletiva de uma engenharia com a cara do Brasil

As aulas inaugurais do Curso André Rebouças são sempre oportunidades de abordar politicamente os objetivos perseguidos pela iniciativa do Coletivo Força Motriz e Senge RJ. Em 2024, no último dia 08/05, o evento foi, também, de comemoração pela vitória histórica representada pelo aumento de 30% nas aprovações de alunos de Cálculo I, alcançando o ponto mais baixo de reprovações na disciplina na UFRJ. Reconhecida como uma barreira para muitos, ela começa a ser vencida, finalmente. 

Os dados comprovam que o curso voltado a estudantes negros e periféricos – mas que recebe todos os interessados, inclusive de outros cursos e universidades – para aulas de reforço de Cálculo I está influindo diretamente no desempenho dos graduandos e no olhar da gestão universitária sobre a questão. Mantendo na universidade aqueles que normalmente apenas desistiriam após sucessivas reprovações, o Curso André Rebouças vem mudado, na prática, a cara das salas de aula de engenharia de uma das universidades mais respeitadas da América Latina.     

A luta em si não é novidade: As faculdades de engenharia sempre figuraram, juntamente com as de direito, medicina, e tantos outros cursos, como espaços para a educação dos filhos da elite, desde a inauguração do ensino superior no Brasil. A lei de cotas, de 2013, mudou o perfil das turmas de primeiro período mas, dez anos depois, sabe-se que estudantes negros e periféricos costumam ficar pelo caminho e jamais chegam ao diploma.

Trata-se de uma evasão marcada pela segregação dentro das próprias instituições de ensino superior que, ao desconsiderar diferenças e especificidades, penalizam aqueles que precisam trabalhar e estudar ao mesmo tempo, que lidam com operações policiais extremamente violentas em seus territórios ou que cruzam a cidade para, depois de horas no transporte público, finalmente chegar à universidade.

“Passar em Cálculo ou Física já é difícil quando você é um estudante branco, de classe média, com recursos suficientes para se manter na universidade de maneira regular, sem precisar trabalhar em parte do dia ou passar horas em deslocamento. Não é muito difícil entender o quão distantes estão as aprovações nessas disciplinas quando a realidade dos alunos e alunas inclui trabalho e horas de viagem diária. Foi por isso que quebramos o silêncio e passamos a denunciar, apontar as falhas. Buscamos entidades importantes para a engenharia nacional, como o Senge RJ, o Crea, a Mútua, o Clube de Engenharia. Foi graças a essa luta que conquistamos essa vitória histórica. Depois de muitos debates dentro da UFRJ, a universidade implementou uma série de mudanças no ensino de Cálculo, levando à diminuição das reprovações”, comemora Levi Neto, coordenador do Curso André Rebouças e um dos diretores do Coletivo Força Motriz.

Batalha histórica

Embora o problema seja evidente, as ações práticas para promover a mudança deste quadro ainda são escassas. Um estudo da própria UFRJ, de 2023, constatou que a taxa de sucesso dos estudantes brancos no Centro de Tecnologia da UFRJ é o dobro daquela dos estudantes negros. É nesse contexto que o Curso André Rebouças se destaca como iniciativa nascida da militância do próprio corpo estudantil e do movimento sindical, com o apoio de entidades que representam a engenharia nacional.

A mesa da aula inaugural do Curso André Rebouças de 2024/01: Da esquerda para a direita, Miguel Fernandez (Crea RJ), Cassia Turci (UFRJ), Pedro Monforte (Senge RJ e Força Motriz), Tatiana Ferreira (Clube de Engenharia), a deputada estadual Renata Souza (PSOL/RJ) e Derê Gomes (Ação Negra).

Pedro Monforte, diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro – Senge RJ e presidente do Coletivo Força Motriz, destaca que a disciplina de Cálculo I foi escolhida como um primeiro desafio, mas que o objetivo do Curso André Rebouças vai muito além dela: “As reprovações em Cálculo representam bem o problema, mas o que queremos discutir é o sistema profissional de engenharia. Quando a gente aponta que existe segregação racial no ensino de engenharia, queremos falar sobre a engenharia como um todo. A nossa profissão ainda é, majoritariamente, para pessoas brancas, com origem de classe média, e isso impacta diretamente o papel da engenharia na sociedade. Como tornar o sistema profissional mais igualitário? Acreditamos que o caminho é a partir do ensino”, explicou Pedro.

A deputada estadual Renata Souza (PSOL/RJ), apoiadora de longa data da iniciativa, destacou que tornar a universidade mais acessível e atenta às dificuldades de um povo majoritariamente pobre é fundamental para a própria democracia brasileira, que não será plena enquanto as diferenças gritantes de acesso e permanência na universidade forem toleradas. Cria da Maré, a deputada lembrou que precisou de três anos de curso pré-vestibular comunitário para chegar ao curso superior e que muitos outros não têm oportunidade de insistir.

“Precisei, praticamente, de uma formação em pré-vestibular para passar. Esse é um dispêndio grande demais para famílias que precisam ter o que comer agora, hoje. Eu consegui estudar e trabalhar, mas meus irmãos não conseguiram. Estavam virando massa e assentando tijolos. Meus vizinhos também não conseguiram. Terminei o doutorado morando na Maré, mas fui impedida de me deslocar inúmeras vezes por causa de operações policiais. Operações que deixam impactos mesmo depois que terminam, uma exaustão mental e física com a qual muitos são obrigados a lidar. Quando foca em pessoas que vivem essa realidade, o Curso André Rebouças desafia a perspectiva do ensino para poucos”, destacou Renata.

Os professores de Cálculo do Curso André Rebouças, mestrandos e doutorandos da UFRJ, foram homenageados ao final do evento.

O historiador Derê Gomes, fundador da Ação Negra, do Complexo da Penha, ressaltou que a criação do Coletivo Força Motriz foi importante para derrubar o mito de que apenas cursos de humanas são politizados, progressistas e engajados. Segundo ele, iniciativas como a do Curso André Rebouças são fundamentais para que seja possível conquistar de fato a democratização do acesso ao ensino superior, uma pauta histórica do movimento negro brasileiro. 

“Precisamos descolonizar o pensamento, ousar pensar um futuro diferente do que as estruturas têm como predeterminado. E é isso que o Coletivo Força Motriz e o Curso André Rebouças vêm fazendo. O Força Motriz nasceu com um projeto de prestação de assistência técnica gratuita para favelas e ocupações. Depois, participou de um pré-vestibular popular. Colaborou com a criação do app Favela Viva, para atender moradores de favelas durante a pandemia. Agora, ajuda a reduzir em um terço as reprovações em Cálculo, permitindo que eles avancem na universidade. Isso é descolonizar pensamentos. Antes do Força Motriz, ninguém nem pensava ser possível questionar os métodos de ensino de uma universidade tão tradicional quanto a UFRJ. Esses meninos e meninas ousaram quebrar o silêncio, fizeram a mudança virar realidade”, destacou Derê.

Entidades apoiadoras

Perna importante do tripé sobre o qual o Curso André Rebouças foi construído, as entidades da engenharia carioca que acreditaram e investiram no projeto também marcaram presença na aula inaugural. Márcio Girão, presidente do Clube de Engenharia e anfitrião do evento, por chamada de vídeo, destacou a luta dos estudantes que, segundo ele, ajuda a torná-los mais fortes. “Estudar, competir, apoiar o sustento da família com as minguadas bolsas, para quem as consegue, achar espaço em casa para instalar um simples computador, frequentar laboratórios de informática insuficientes e até precários nas escolas. Esse é o destino desses estudantes, mas que os fará mais fortes para enfrentar a vida após a almejada formação”, discursou Girão. A diretora Tatiana Ferreira representou a entidade na mesa.

Levi Neto, coordenador do Curso André Rebouças; Cassia Curan Turci, vice-reitora da UFRJ e Pedro Monforte, diretor do Senge RJ e presidente do Coletivo Força Motriz.

Além do Clube de Engenharia, estiveram representados a Mútua RJ, que enviou vídeos de parabenização com Jamerson Freitas, diretor Geral; Pietro Valdo, diretor Financeiro e Ana Paula Masiero, diretora Administrativa da entidade. Miguel Fernandez, presidente do Crea RJ, também participou da mesa. “O Força Motriz faz assistência estudantil na veia, da melhor forma possível, fortalecendo os alunos diretamente. Não entendo como alguém pode se opor a algo assim, independente de ideologias políticas. Que o curso seja mais que os resultados nas notas dos alunos, que inspire outras iniciativas no Rio e no Brasil afora”, defendeu Fernandez.

A UFRJ foi representada por sua vice-reitora, a professora Cassia Curan Turci. “Fui monitora de cálculo por quatro anos durante o bacharelado. Depois, deu aula na disciplina. Fico muito feliz com iniciativas como a do Curso André Rebouças, que trabalha para diminuir as diferenças que temos na sociedade. Precisamos de mais projetos de acolhimento ao estudante porque a nossa universidade precisa refletir a sociedade que temos. São essas iniciativas que vão construir um Brasil mais igualitário, humano e justo. A universidade é para todos e todas. Precisamos lutar por isso”, ressaltou Turci.


Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Coletivo Força Motriz

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