Aviação na Segunda Guerra Mundial: dois heróis soviéticos desconhecidos do Ocidente

A história de dois lendários pilotos da luta soviética contra a invasão nazista

Duas lendas da luta soviética contra a invasão nazista, durante a Grande Guerra Patriótica. À esquerda, sentado no avião Aleksei Maresiev.
Crédito: Alamy. À direita Ivan Kozhedub, Crédito: History Net.

Embora não fosse o cerne de sua história, o filme “Dunkirk”, dirigido por Christopher Nolan, dedicou parte de seu tempo à visão e atuação de pilotos de combate da RAF (Royal Air Force – aviação britânica), durante a evacuação dos milhares de soldados ingleses e aliados espremidos na costa ocidental francesa, em um prelúdio do que seria a conhecida Batalha da Inglaterra. Não se discute a importância da batalha, nem as cenas impecáveis e tensas do combate aéreo que se vê no filme. No geral, filmes ocidentais que trataram desse tema (os combates aéreos no front ocidental) foram bem fiéis aos fatos, sem patriotismos ou exageros.

Entretanto, o Ocidente sempre tratou as batalhas aéreas no front ocidental como únicas e fundamentais por si só e seus pilotos como únicos heróis e ases. Por vezes, até se deu destaque a pilotos alemães, mas era como se o front oriental não existisse e a aviação soviética fosse inócua. Mais uma vez, o Ocidente buscou reescrever a história e ignorar os fatos. Deve-se destacar que os soviéticos construíram aviões avançados e eficientes em combate como a série Lavochkin e Ilyushin e conduziram batalhas ferozes nos céus de Murmansk, Moscou, Stalingrado, Kursk. Por outro lado, os pilotos soviéticos eram verdadeiros ases e destemidos, chegando a sacrificar a vida para evitar bombardeios inimigos, ou avanço de colunas de blindados.


Al Deere (à esquerda), que em parte inspirou o personagem de Tom Hardy em Dunkirk. Crédito: The Wireless.

A filmografia ocidental ignorou olimpicamente essa parte da história, assim como a literatura também o fez por décadas. Por isso trazemos aqui dois casos emblemáticos para que o público brasileiro possa ter conhecimento e ampliar a visão sobre a participação soviética, inclusive nas batalhas aéreas da Segunda Guerra Mundial.

Ivan Nikitovitch Kozhedub foi um jovem às soviético nascido na Ucrânia que se destacou na Grande Guerra Patriótica, nos anos de 1943 a 1945, pilotando o caça Lavochkin La-5 e La-7. Combateu no Front de Voronezh, Batalha de Kursk, em Kharkov (ou Kharkiv), 2º Front Ucraniano, 1º Front Bielorrusso e Berlim. Típico filho da classe trabalhadora soviética que teve oportunidades graças ao sistema socialista, ascendeu rapidamente na carreira militar, graças aos seus feitos. Saiu de primeiro sargento a capitão, tendo sido subcomandante de um regimento aéreo, sendo que ao final da guerra tinha apenas 25 anos.

Ivan Kozhedub. Crédito: politikus.ru Lavochkin La-7. Crédito: Aviastar.org.

Ivan Kozhedub também ficou conhecido por ter um dom natural com uma técnica de combate conhecida como tiro em deflexão. Esta é uma técnica usada para disparar um projétil em um alvo em movimento, também conhecido como antecipar o alvo, ou seja, atirar à sua frente para que este e o projétil colidam. Essa técnica só é utilizada quando o alvo se move a uma distância suficiente para deslocar sua posição, durante o tempo que o projétil levaria para alcançá-lo. Os aviões de combate modernos têm pontos de vista de deflexão automatizados, onde um computador faz os cálculos e projeta a solução em um display (HUD). Entretanto, à época esses cálculos eram feitos pelo próprio piloto nas frações de segundo que possuía.

Kozhedub costumava atingir os adversários a 200 ou 300 metros de distância, sendo um verdadeiro sniper no ar assim como em terra. Ele participou de 330 missões, 120 combates aéreos, com 62 aviões abatidos. Jamais foi derrubado, sempre retornando ao aeródromo com seu avião, ainda que avariado pelo fogo inimigo.

Crédito: www.planetfigure.com Identidade Ivan Kozhedub Crédito: www.planetfigure.com

Ao ter derrubado no total 62 aviões, Ivan Kozhedub tornou-se simplesmente o melhor piloto aliado da Segunda Guerra Mundial na Europa, com maior número de vitórias. Cabe então uma pergunta básica: porque esse fato relevante desse conflito crucial não é mencionado na historiografia e filmografia ocidentais? A resposta é óbvia, dentro da lógica da Guerra Fria que se seguiu e que até hoje não se encerrou: porque falaria de um piloto soviético, heróico e bem sucedido, o “ás dos ases”. A imagem dos soldados soviéticos tinha que ser a de subumanos toscos e violentos, mal equipados, que venciam unicamente por serem mais numerosos e por conta do “general Inverno”. Assim não se podia admitir a existência de heróis de guerra soviéticos e muito menos reconhecer a competência, a eficiência e a combatividade do Exército Vermelho.

Ivan Kozhedub. Crédito: www.planetfigure.com Ivan Kozhedub. Crédito: www.planetfigure.com

Entre os 62 aviões abatidos por Ivan Kozhedub há um Messerschmidt Me-262, primeiro avião de caça a jato produzido na História. Ou seja, foi um dos poucos pilotos a enfrentarem um avião com propulsão a jato, pilotando um avião a hélice, o La-7, sendo que, além de sobreviver, conseguiu derrubá-lo. Pelos seus feitos, Kozhedub recebeu por três vezes a medalha de Herói da União Soviética, a mais alta condecoração da URSS. Para maiores detalhes dessa história que supera qualquer roteiro imaginário de Hollywood, recomendamos o livro “Tudo pela pátria – Em busca do combate”, autobiografia de Ivan Kozhedub, publicado pela editora C & R Editora em 2015. Veja a entrevista, traduzida para o inglês, que o piloto concedeu ao Aviation History .

O Messerschmitt Me 262, primeiro avião de caça a jato, produzido pelos Nazistas. Crédito: wikipedia. Autobiografia de Ivan Kozhedub. Crédito: Saraiva.

Aleksei Maresiev

Outro piloto soviético desconhecido do público brasileiro é Aleksei Maresiev. Ele se destaca não tanto pela sua habilidade pilotando caças, embora fosse mestre nisso, mas pelo seu espírito inquebrantável, capacidade de sobrevivência e não desistir nunca de seus ideais. Nascido em Kamyshin, região da então Stalingrado, atual Volgogrado, trabalhou como torneiro e depois foi para a Academia Militar de Aviação. Iniciou sua participação na guerra em agosto de 1941. Até março de 1942 havia derrubado 4 aviões, mas em 4 de abril seu avião, um Polikarpov I-16, foi derrubado perto de Staraya Rossiya.

Aleksei Maresiev, um aviador e heroi soivético. Crédito: kp.ru. O Polikarpov I-16, o tipo de avião pilotado por Aleksei Maresiev. Crédito: The Aviation History Online Museum.

Na queda, Maresiev ficou gravemente ferido nas pernas e em pleno inverno teve de se arrastar por 18 dias na floresta até chegar a uma aldeia subterrânea, sendo ajudado por camponeses soviéticos. Estes entraram em contato com o comando soviético que enviou um avião para buscar o piloto, que a essa altura era considerado morto. Os médicos do hospital militar de Moscou ficaram surpresos com a resistência do piloto que chegou ao hospital subnutrido e com os pés gangrenados. Após um tratamento intensivo e a pouca evolução, decidiram por amputar as pernas abaixo do joelho para salvar a vida de Maresiev.

Entretanto, este não desistiu de voltar a pilotar. Passou a fazer fisioterapia e recebeu próteses de madeira. Após enfrentar a burocracia e a incredulidade de membros do comando da aviação, Maresiev provou que poderia voltar a pilotar um avião, sendo bem-sucedido nos testes e retornando ao combate em junho de 1943. Em um combate aéreo em agosto de 1943, ele derrubou 3 caças alemães Focke-Wulf 190. No total, participou de 86 combates e abateu 11 aviões alemães. Recebeu uma medalha de Herói da União Soviética.

Dynam Focke Wulf FW-190 1270mm (50″) Wingspan – PNP . Crédito: Motion RC. Ilustração de Aleksei Maresiev. Nela ele se arrasta pela neve, após ter seu avião abatido e consegue chegar a uma vila de camponeses soviéticos. Crédito: Pinterest. Selo em homenagem a Aleksei Maresiev. Crédito: Wikipedia.

Sua história foi contada pelo renomado escritor soviético Boris Polevoi no livro “Um homem de verdade”, que serviu de roteiro para o “O Conto de um Homen de Verdade” (1948), dirigido por Aleksandr Stolper, no qual seu sobrenome foi alterado para Meresiev. Novamente vemos que uma história absolutamente incrível simplesmente foi ignorada no Ocidente, porque se tratava de um piloto soviético heróico e idealista, que com a sua superação inspirou outros combatentes. Nosso papel, entretanto, é trazer esses fatos históricos para o conhecimento dos leitores brasileiros, no intuito de que possam ver para além da cultura que nos é imposta do Norte.

TEXTO: Ricardo Quiroga Vinhas – Graduado em Engenharia Química (UFRJ) e em Direito (UERJ). Servidor Público Federal do Judiciário Trabalhista (Tribunal Regional da 1º Região). Pesquisador da Segunda Guerra Mundial, com ênfase na participação soviética. Pesquisador da realidade de Cuba. Membro da Associação Cutural José Martí.

Fonte: InterTelas
 

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