O Brics ganhou musculatura geopolítica com sua expansão, o que deve tirar o sono dos dirigentes das potências ocidentais, especialmente os Estados Unidos. Essa musculatura atende principalmente aos interesses da China, e em certa medida da Rússia, que criam assim um contraponto mais forte ao G7 – grupo das sete maiores economias do planeta. Todavia, o bloco abraçou países que são conservadores e têm economias baseadas em exploração de petróleo, tendências que vão na contramão de pautas contemporâneas importantes, como direitos das mulheres e combate às mudanças climáticas.
Esses são alguns aspectos principais que saltam aos olhos após a decisão anunciada nesta quinta-feira (24) pelo Brics, de incluir seis países (Argentina, Irã, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos e Etiópia) ao grupo que formado até então por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
O Brasil, cujo governo tem defendido enfaticamente o fortalecimento do papel das mulheres e a necessidade de se promover o desenvolvimento de matrizes limpas de energia, a fim de combater o desmatamento e o aquecimento global, terá de lidar com esses temas de forma mais intensa a partir de agora. Esse deve ser o preço a se pagar para que o governo brasileiro tenha mais apoio em sua antiga batalha pela reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o que talvez seja em vão porque não interessa à China (o Brasil virar membro permanente não seria um problema em si, mas Pequim quer evitar fortalecer Índia e Japão, que também são candidatos). Tudo isso sem falar na questão da Argentina, país apoiado pelo Brasil, que terá eleições ainda neste ano, com a possibilidade de eleger um imprevisível candidato ultraliberal de extrema direita.
Para avaliar o sentido dessa expansão, o Brasil de Fato consultou quatro especialistas. Confira abaixo as opiniões de Giorgio Romano, cientista político; Ana Saggioro, diretora do centro de pesquisa Brics Policy Center, da Puc-Rio; Marco Fernandez, pesquisador do Instituto Tricontinental e co-fundador do Dongsheng; Bruno Hendler, professor de relações internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Brasil de Fato: O que a expansão do Brics deve representar para o bloco em termos de atuação conjunta e de incidência sobre os temas mundiais? A expansão corre risco de incluir membros de posições antagônicas ao Sul Global?
Romano: A expansão demonstra que o grupo é capaz de tomar decisões rápidas. A gente agora tem três países árabes: Arábia Saudita, Emirados Árabes e Egito, países de peso no mundo árabe. Isso significa um fortalecimento de uma área muito disputada, onde há bases militares dos Estados Unidos, então isso chama muito a atenção. Também chama atenção a questão do petróleo. Nós temos a Arábia Saudita, o Irã e os Emirados, três países cujas economias circulam em torno do petróleo e começam a pensar como vai ser o futuro, porque o petróleo é uma força econômica com prazo de validade. Sem falar na Rússia, que já está dentro, então o Brics vai ter um peso grande, inclusive na OPEP Plus. Daí tem a Argentina. Como cada país patrocinou um amigo, é evidente que o Brasil não tinha escapatória, tinha que apostar na Argentina. No caso absurdo de (o candidato Javier) Milei ganhar as eleições, aí são outros quinhentos. Mas (a entrada da Argentina) é uma vitória do (seu adversário e ministro da Economia Sergio) Massa. E repare que no mesmo dia o (ministro da Economia Fernando) Haddad anuncia a possibilidade de a Argentina comprar produtos brasileiros pagando em renmimbi, a moeda chinesa. E no mesmo dia o FMI faz acordo e coloca crédito especial à disposição da Argentina, flexibiliza as condicionalidades… (na última quarta-feira, 23, o Fundo Monetário Internacional aprovou o desembolso de 7,5 bilhões de dólares para a Argentina, além de regras que permitirão ao governo certa autonomia para intervir no mercado financeiro em situações de volatilidade). Coincidência? Pode ser. Mas mostra que quando os países do centro (potências ocidentais) percebem que vão perder posições, começam a entender que precisam oferecer alguma coisa.
Sobre posições antagônicas, o bloco já tem países nessa situação. Índia e China estão numa guerra na fronteira. Não é uma guerra quente, mas já teve (conflito) algum tempo atrás e pode acontecer no futuro de novo. Além disso, tem várias posições diferentes. O Brasil, por exemplo, condena claramente a invasão (da Rússia) na Ucrânia, então isso não necessariamente seria um problema.
Saggioro: Eles chegaram a um acordo sobre seis países que representam os interesses particulares de cada membro. A gente vê claramente a força que tiveram a Rússia e a China, mas o que significa o que chamaram de full membership? Eles não explicaram se com esse Brics expandido, as decisões vão ser tomadas por consenso ou por maioria, ou algum outro mecanismo que consiga, além de incluir esses membros, conter o peso das definições chinesas. Claramente foi um ganho geopolítico, principalmente pela Arábia Saudita, o parceiro histórico dos americanos que vira o pé do Brics no Oriente Médio com sua enorme reserva de petróleo. O restante foi negociação caso a caso. No caso da Argentina, a gente sabe que foi pressão do Brasil. Egito e Emirados Árabes já estava no NDB, então é relativamente fácil. Agora o Irã é o caso mais complexo. O Lula chega aqui na África do Sul fazendo um discurso que coloca as questões do empoderamento das mulheres como um elemento crucial para o desenvolvimento dos países, era uma sinalização de que o Brasil dificultaria a questão do Irã. Deve ter dificultado e perdeu claramente para a Rússia, porque o Irã é, para Rússia e China, uma peça-chave na contenção geopolítica dos Estados Unidos. Então, o Irã agora sai fortalecido por meio do bloco a gente vê dentro do bloco o poder que teve à Rússia e a China. E o caso da Etiópia é claramente mais uma expansão para a África. A Etiópia é a sede da União Africana, que agora vem com um peso maior frente à criação da área continental de livre comércio africana e ao pleito para entrar no G20.
Fernandez: O Zbigniew Brzezinski, que foi um dos grandes elaboradores da política externa de Washington durante décadas, o grande pesadelo dele, que está no livro O Tabuleiro de Xadrez, realizou, que seria uma união entre Rússia, China e Irã, que se consolida de vez com a entrada do Irã. O fato de um país extremamente sancionado pela Casa Branca ter sido aceito no Brics é um recado, e não é um recado pouco sutil para Washington. “Vocês não vão pautar a nossa agenda”. Aliás, o próprio Celso Amorim disse isso: acabou a história do G7 determinar o que o resto do mundo faz. A Arábia Saudita entrar também é um golpe nos Estados Unidos, na medida em que a gente tem visto um afastamento da Arábia Saudita em relação aos Estados Unidos. Lembrando que a Arábia é um dos pilares do sistema financeiro global com o petrodólar, nesse esquema pelo qual os Estados Unidos, desde o final da Segunda Guerra, mas sobretudo a partir dos anos 70, compram petróleo da Arábia Saudita e vendem armas para o país, que em troca se compromete a comprar títulos da dívida do governo dos Estados Unidos. Isso é um dos pilares do sistema financeiro dominado pelos Estados Unidos e isso começa a ser ameaçado quando a Arábia Saudita diz que está disposta a vender petróleo para a China em renmimbi. Evidentemente que agora vai haver uma aproximação maior da Arábia Saudita não só com a China mas também com a Rússia. A Casa Branca vai precisar começar a se preocupar bastante.
Outro fator é que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes chegam com muito poder de fogo financeiro, e isso vai contar muito no banco do Brics, que está com dificuldade de captar recursos. Melhorou com a chegada da Dilma (Rousseff, presidenta do banco), mas está aquém das suas necessidades. E os dois podem trazer fôlego para o acordo de reserva contingente, outra arma poderosíssima que o Brics tem na mão e ainda não usou.
Hendler: Vejo uma espécie de acoplagem da Nova Rota da Seda, que é o projeto de política externa chinês, com o Brics, então a ampliação tende a favorecer a China no sentido de ampliar o escopo da sua projeção econômica, de investimento e megaprojetos de infraestrutura e também em termos monetários e cambiais. Vai haver uma diluição da capacidade de influência de Brasil, Índia e África do Sul, e um protagonismo ainda maior da China.
Como você avalia a entrada dos novos países? O que vai representar para o Brics e como vai repercutir junto às potências ocidentais?
Romano: Acho que o Ocidente nunca antes olhou tanto para uma cúpula do Brics. Tem muito a ver com a guerra na Ucrânia, o que para os observadores ocidentais era o ponto crucial. Então, eu acho que as potências ocidentais estão sempre apostando que não vai dar certo, que o Brics não serve para nada. Mas o banco do Brics já emprestou 30 bilhões de dólares. Então, tem uma fila de países que querem entrar no Brics e outra que quer entrar no banco do Brics, o que aliás faz mais sentido porque tem um estatuto constitutivo que prevê isso. Então, os países ocidentais vão entender que tem uma força, que o resto do mundo agora tem uma cara.
Saggioro: Do ponto de vista das lutas sociais, da agenda dos trabalhadores, das comunidades, o que a gente está vendo é um peso enorme de países com base (energética) fóssil. Então toda a discussão de meio ambiente, de mitigação das mudanças climáticas, de saída das energias fósseis, isso vai ficar muito contraditório… Então temos um Brics muito forte na geopolítica, mas muito afastado de qualquer possibilidade de transformação socialista. São países de extrema desigualdade, extrema repressão aos trabalhadores e cujas elites e as burguesias não estão nem perto de permitir qualquer transformação social mais ampla.
Fernandez: Os países do Brics Plus estão chegando a 36,6% do total do PIB global, em paridade de poder de compra. O G7 tem 49,22 trilhões de dólares, o que dá 29,98% do PIB global. Então é evidente que o Brics tem poder de fogo agora considerável do ponto de vista econômico. Aí agora a preocupação é com a Argentina. Não sei qual é o cálculo político, mas me preocupa a entrada da Argentina nesse momento, porque se o Milei ganhar vai ser um vexame, um constrangimento político. Por outro lado, é a cota do Brasil. Se não entrasse a Argentina, outro país possível talvez fosse a Venezuela, mas aí talvez fosse pedir demais, porque o Brics já está botando o Irã, seria uma afronta muito grande aos Estados Unidos.
Outra grande vitória foi decisão de dar início aos estudos para a desdolarização. Agora vão começar a estudar sistemas de pagamentos locais, comércio e moedas locais, além do estudo sobre a moeda de reserva comum ao Brics. Pode ser que na próxima cúpula se tome alguma decisão. Acho que é uma vitória do presidente Lula porque ele vinha batendo nessa tecla, tanto que foi ele quem anunciou.
Hendler: O Brics é que se chama de geometria variável de poder, então não há uma vinculação muito grande. Esses países podem criar um antagonismo ao G7, mas em questões mais sensíveis, como guerra na Ucrânia, não proliferação de armas nucleares, acho que o Brics vai ter pouco peso nas decisões internas de cada país. Brics é pouco vinculativo e talvez essa seja sua grande força. Porque se já é difícil obter consensos no G7, com países em tese parecidos, imagina com 10, 15, 20 membros de perfis tão diferentes. O que pode acontecer é o Brics virar uma espécie de irmão, ou ficar espelhado no G20.
Como você analisa que será a posição brasileira no bloco com os novos membros?
Romano: O Brasil tentou negociar esse acordo pedindo um apoio mais explícito à ampliação (da quantidade de membros permanentes) do Conselho de Segurança da ONU, com inclusão do Brasil. Afinal, se a gente defender a expansão do Brics, por que China e Rússia bloqueariam nossa entrada no conselho? A China estava com o pé atrás e isso vai ficar meio ambíguo na declaração final também. E acho que isso tudo fortalece a relação do Brasil com a Argentina.
Com relação à questão do petróleo, o Brasil é também um grande produtor, está aumentando sua posição como exportador, mas ao mesmo tempo é um país que está muito bem colocado em transição energética, com uma matriz muito limpa, muito mais limpa que todos os outros países do G20 e do Brics, então ninguém precisa dar lição de moral para o Brasil. A questão energética vai jogar um papel importante no Brics, então isso é interessante para o Brasil.
Saggioro: O Brasil está tentando ainda fazer esse ‘trade off’ da expansão do Brics com o apoio à reforma do Conselho de Segurança da ONU. Eu acho que o Brasil se colocou e negociou de forma muito diferente da África do Sul, que não teve nenhum protagonismo… Mas ficou muito clara a preponderância da agenda da China na sua aliança com a Rússia. O Brasil não sai perdendo no sentido de que para a linha mais política do governo brasileiro, representado na dupla Celso Amorim e Lula, era importante um Brics forte, mas para os operadores da política externa brasileira vai ser muito difícil lidar com esse Brics expandido. A não ser que o Brasil tivesse realmente uma contrapartida, uma posição clara da China e da Rússia pela reforma do Conselho de Segurança, e isso não saiu porque obviamente a China não vai querer que a Índia ganhe preponderância. Então, as tensões internas no Brics permanecem.
Ainda com relação à Argentina, num contexto eleitoral tão complicado que eles estão vivendo, essa sinalização positiva do Brics é uma tentativa do Brasil de influenciar o cenário eleitoral, que está rumando para a extrema direita. Porque a Argentina adere não apenas pela aliança de seu governo com a China, como também porque o Brasil está propondo um mecanismo de ajuda para manter o comércio vivo, apoiar a recuperação econômica da Argentina por meio de um canal desdolarizado.
Fernandez: A grande reivindicação brasileira, para ser observarvada nos próximos meses, é um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Ouvi de fontes na África do Sul que isso foi uma pauta e vai ser levada em conta.
Fonte: Brasil de Fato
Texto: Rodrigo Durão e Julio Adamor
Edição: Vivian Virissimo
Foto: Ricardo Stuckert/PR