Capacitação popular: Senge RJ, Fiocruz e Faferj promovem curso para lideranças comunitárias

"Embora possa parecer contraditório colocar a centralidade da ação sindical na classe trabalhadora periférica — uma vez que poucos engenheiros vivem essa realidade —, trata-se de um falso dilema. Defender os direitos da população periférica, destaca ele, é fazer com que a engenharia sirva ao povo brasileiro, e não à geração de mais-valia para empresários e banqueiros", destaca Pedro Monforte, diretor do Senge RJ

A cada 15 dias, lideranças de diferentes favelas e comunidades urbanas da cidade do Rio de Janeiro se dirigem à Cinelândia. O destino é o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Ali, homens e mulheres que se dedicam a assistir, orientar e representar a população de seus territórios participam de um curso pensado especialmente para a troca de experiências, a capacitação política e a ampliação das ações que desenvolvem cotidianamente. O objetivo é garantir o acesso a direitos, arbitrar conflitos e promover a colaboração e a responsabilidade compartilhada em espaços onde o Estado ainda tarda em chegar.

A iniciativa parte de um trio bastante diverso: um sindicato, uma instituição de pesquisa científica e inovação em saúde, e um movimento social de favelas que decidiram arregaçar as mangas e apoiar o trabalho de quem lida diretamente com uma parcela da população que, embora fundamental para que a democracia brasileira um dia se realize plenamente, ainda não tem acesso integral à cidadania.

Senge RJ, Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) idealizaram o curso “Formação em Políticas Públicas e Saúde para Lideranças Comunitárias”, que ocorre desde setembro de 2024, no auditório do sindicato. A formação é dividida em três módulos, com conteúdos que abrangem aspectos teóricos e históricos, oficinas voltadas para práticas cotidianas e uma intensa troca de experiências entre lideranças.

Teoria, prática e fortalecimento de rede

Segundo Eden Pereira Lopes da Silva, professor e integrante da equipe de coordenação do curso, a proposta é capacitar tecnicamente as lideranças em relação às suas realidades e ampliar as redes de articulação, fortalecendo a troca sobre desafios comuns. “É crucial, também, que essas lideranças, a partir da formação e deste contato estabelecido, consigam levar essas práticas para o seu cotidiano, não só melhorando, mas transformando algumas dessas práticas que já são desenvolvidas no âmbito do trabalho comunitário”, conta Eden.

A teoria foi o ponto de partida escolhido. Conhecimentos e reflexões de natureza histórica e sociológica foram compartilhados com o intuito de ampliar a visão de mundo das lideranças comunitárias. No programa do primeiro módulo, estavam temas como história e sociedade. Eden destaca a aula sobre a Constituição de 1988. O contato com a Carta Magna apresenta às lideranças os direitos garantidos.

“Falamos sobre o que é a nossa Constituição, que direitos ela prevê, sua importância para o sistema político-eleitoral brasileiro e para a garantia de direitos sociais. Também discutimos segurança e políticas públicas voltadas para essa área. Nosso objetivo é dar ênfase a esses temas, ampliando o arcabouço teórico das lideranças e preparando-as para lidar com diversas situações”, afirma Eden.

Dos fundamentos da luta comunitária à organização e evolução das favelas, o conteúdo passa pelo período colonial, a Primeira República, a era Vargas e chega ao terceiro governo Lula. Entendidas as condições que nos trouxeram até aqui, o módulo inicial terminou com uma aula sobre a importância da representatividade territorial nas instituições públicas. Munidas de informação, as lideranças passam a enxergar com mais clareza as escolhas, motivações e projetos que moldaram suas realidades.

O segundo módulo está em curso desde fevereiro. Agora, o foco é o presente. “As aulas têm objetivos mais práticos, voltados à capacitação para uma série de situações cotidianas. São oficinas com historiadores, sociólogos, assistentes sociais e advogados que disponibilizam seu tempo para tratar de questões relevantes”, explica Eden. A proposta é apresentar políticas públicas e marcos legais que as associações de moradores podem acessar por meio da organização popular.

Um terceiro módulo está previsto para os próximos meses. O foco será a troca de experiências entre lideranças, que visitarão outras favelas e ocupações para conhecer os trabalhos desenvolvidos nesses territórios. Segundo Eden, o contato com outras realidades deverá fortalecer os esforços de organização popular em seus próprios territórios.

Articulação social para fortalecer a cidadania

O encontro entre Senge RJ, Fiocruz e Faferj para realização do curso acontece em um momento de reorganização das lutas populares. Com diferentes históricos e campos de atuação, o sindicato, o instituto de pesquisa e o movimento social compartilham o mesmo objetivo: empoderar a população — especialmente aquela com mais dificuldade de acesso a serviços públicos e ao pleno exercício da cidadania — para a construção de um país mais democrático.

Eden destaca que, embora vivamos um momento de concentração política em torno dos partidos e da atuação institucional, não há caminhos para a superação das desigualdades sem forte participação da sociedade civil organizada e dos movimentos populares.

“Uma vez compartilhadas essas potencialidades entre as três entidades, há possibilidade real de intensificar a capacidade das organizações populares. Isso pode até mesmo ressignificar o papel dos sindicatos e das instituições científicas, que sofreram ataques graves com a reorganização do mundo do trabalho e das relações sociais após o golpe de 2016 e a pandemia da Covid-19. Surgiu uma nova visão sobre o papel da organização territorial popular, do mundo do trabalho e da relação entre ciência e sociedade. Esse curso é parte dessa rearticulação entre movimentos populares e outros setores da sociedade civil com diferentes experiências e históricos de luta.”

Um futuro para o movimento sindical

“A crise do movimento sindical no Brasil nos impõe uma tarefa histórica. Nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, a esquerda enfrenta o desafio de organizar trabalhadores que nem casa têm, vivem em barracos, comem quando dá e o que dá, e trabalham, na maioria das vezes, com bicos ou aplicativos. Gente que muitas vezes nunca conheceu uma CLT.”

A declaração é de Pedro Monforte, diretor do Senge RJ responsável pelos cursos de capacitação do sindicato. Monforte explica a estratégia por trás da iniciativa: olhar para além da categoria e buscar forças na periferia. Ela dialoga, também, com as resoluções do 13º Congresso Nacional de Sindicatos de Engenheiros (13º Consenge), realizado em setembro de 2023.

Pedro afirma que, embora possa parecer contraditório colocar a centralidade da ação sindical na classe trabalhadora periférica — uma vez que poucos engenheiros vivem essa realidade —, trata-se de um falso dilema. Defender os direitos da população periférica, destaca ele, é fazer com que a engenharia sirva ao povo brasileiro, e não à geração de mais-valia para empresários e banqueiros.

“Diferente do perfil hegemônico do engenheiro brasileiro — um homem branco, conservador, de classe média, formado em uma universidade com mentalidade liberal —, os engenheiros periféricos já nascem com elevado senso de consciência de classe. São pessoas que vivem na pele diariamente as maiores dificuldades que o capitalismo brasileiro impõe e que, portanto, estão mais propensos a entender por que o sindicalismo e a organização política são necessários. Para sobreviver. Portanto, para nós engenheiros, colocar o enfoque na periferia não é apenas uma tarefa histórica, é uma questão de sobrevivência”, explica.

 

Texto: Rodrigo Mariano | Fotos: Senge RJ

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