Os primeiros seis meses do próximo governo são cruciais para o presidente eleito conseguir reverter mudanças estruturais impostas por Michel Temer e, ao mesmo tempo, elaborar um projeto de desenvolvimento de longo prazo, reconstruindo uma arquitetura institucional que o suporte. “São desafios simultâneos”, alerta o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz, que calculou pelo menos 20 mudanças de impactos graves após o golpe de 2016, entre elas a Reforma Trabalhista, a alteração nas regras de exploração do pré-sal e a Emenda Constitucional 95, chamada PEC dos gastos.
Por isso, diz Ganz, será preciso definir as prioridades para intervenção e mudanças institucionais que deem suporte ao desenvolvimento econômico, capaz ainda de gerar resultados de curtíssimo prazo: “Oferecer oportunidades de emprego a 13 milhões de pessoas que estão desempregadas há mais de dois anos, a outras 14 milhões que estão subocupadas e à força de trabalho crescente em jornada parcial. Essas pessoas não podem esperar quatro anos. O novo governo tem que dar resposta entre o primeiro e o quarto mês para a inserção produtiva dessas pessoas.”
Além da urgência humana e social da situação de desemprego, o diretor do Dieese observa que, a partir do segundo semestre de 2019, começam as preparações para as eleições municipais; e, a partir do ano seguinte, já os primeiros movimentos para o próximo pleito presidencial, tornando mais difíceis as articulações no Congresso. “Então, o governo tem uma força muito grande nos primeiros seis meses. E não dá pra fazer 20 mudanças em seis meses.”
Na definição das prioridades, Ganz elenca quatro principais aspectos que precisam ser levados em conta: as radicais transformações no sistema produtivo – tecnológicas, com a revolução 4.0, de automação intensiva, e patrimonais, com a captura das empresas por fundos financeiros –; o cenário futuro do mundo do trabalho; a questão demográfica, que impacta também os sindicatos; e a ambiental. Desafios que têm movido as peças no tabuleiro contra a justiça social e os direitos dos trabalhodores.
“Estamos passando no mundo por uma mudança estrutural no sistema produtivo – alguns a caracterizam como quarta Revolução Industrial; alguns dizem que ela já traz dentro dela a quinta revolução”, diz Ganz. “Se isso for verdade, estamos com um padrão de mudança no sistema produtivo que nunca foi visto nessa intensidade.”
A combinação das alterações radicais na capacidade de produção de energia, nas possibilidades da comunicação e do transporte potencializam e aceleram esse movimento, com mudanças tecnológicas que implicam mudanças também nos modelos de negócio das corporações. “Um automóvel movido a eletricidade utiliza apenas 10% dos componentes de um veículo a combustão, e poderá ser montado, mais ou menos como um Lego, dentro de uma garagem”, explica o diretor do Dieese. Nesse sentido, ele cita a General Motors, que, recentemente, ao reelaborar seu planejamento estratégico, deixou de ser uma “produtora de automóveis” para se posicionar como uma empresa que vai oferecer “mobilidade”. E, ao mudar da produção de um bem para a prestação de um serviço, “começa a alterar sua estratégia de negócio olhando 50 anos para frente’.
Desenvolvimento industrial
Nesse contexto, Ganz acredita que há a oportunidade de articular um projeto de salto tecnológico para que o país passe, em alguns setores, de um estágio ainda característico da primeira revolução industrial para a quarta, se tiver um projeto de desenvolvimento. “Estamos falando da possibilidade de recolocar neste processo eleitoral a alternativa de dar centralidade ao desenvolvimento nacional, a partir da perspectiva da soberania e da capacidade de engenharia de situar nossa riqueza humana e material em função de uma perspectiva de desenvolvimento social. Esta é a alternativa que está posta.”
Para esse projeto, na opinião do sociólogo, é necessário garantir autonomia e potencialidade econômica para regiões que estão isoladas e rearticular cadeias produtivas. “Quem olha o nosso território, observa que a reconstrução do espaço urbano brasileiro é um vetor fundamental ao nosso desenvolvimento e da reindustrialização.” Por exemplo, ele cita a biodiversidade, área em que o Brasil tem, na sua avaliação, um “potencial fantástico” na área de fármacos. “Essa é uma dimensão que deve ser incluída no nosso cálculo”.
Capitalismo financeiro e precarização do trabalho
Outro aspecto relevante é que as mudanças tecnológicas estão sendo aceleradas pela nova configuração patrimonial das empresas que, cada vez mais, passam a ser controladas por fundos de investimento. O efeito principal disso é uma brutal ênfase na rentabilidade do negócio, principalmente a partir de investimentos em tecnologias que reduzam a demanda por mão de obra, promovendo relações de trabalho precarizadas e de baixo custo.
A garantia institucional e política para esse quadro vem das reformas trabalhistas que cortam direitos. Levantamento da OIT, diz Ganz, aponta que, de 2008 a 2014, 110 países fizeram reformas trabalhistas, com um total de 642 alterações nas legislações relativas ao trabalho. “O que todas buscam: grande flexibidade para ajustar as formas de contrato; alta flexibiliade na unidade de jornada de trabalho, a ponto de que seja possível contratar uma única hora de trabalho; alta flexibilidade no custo – incluindo salários e benefícios; liberdade máxima para demitir; segurança máxima para não acumular passivo trabalhista.”
O Brasil, com Temer, segundo o Banco Mundial, conseguiu fazer a reforma mais ampla, efetiva e no menor prazo, diz Ganz. “Macron [Emmanuel Macron, presidente da França] fez por decreto uma única mexida: autorizar a empresa francesa a demitir sem suporte do sindicato. Uma. Nós fizemos 300 mudanças.”
As reformas têm sido necessárias para proteger o novo modelo liberal de foco financeiro, em detrimento da qualidade de vida e do trabalhador, porque a lógica de uma empresa gerida pelo interesse de um fundo de investimento é diferente da lógica clássica do capitalista. Por exemplo, explica o diretor do Dieese, estudos mostram que um capitalista investia, em média, três quartos (¾) do seu lucro na ampliação de capacidade produtiva; e um quarto (¼), era para a retirada do acionista. Há cerca de 30 anos, a aquisição dessas empresas por fundos faz com que a média de distribuição do lucro tenha se invertido: três quartos (¾) para os acionistas e um quarto (¼) para investimentos.
Trabalhador virtual e sindicatos
“Isso tem feito com que o pé no acelerador no desenvolvimento tecnológico ocupe cada vez mais a substituição da força de trabalho”, alerta Ganz. Segundo ele, caso clássico são os atendentes de telemarketing, que custam em média R$ 6 mil, incluindo salários, encargos, equipamentos, etc. Com atendentes virtuais, que utilizam sistemas de inteligência artificial, esse valor despenca a R$ 250,00. Esse processo de substituição seria acelerado pelo interesse das empresas que, além de darem alta taxa de retorno, são elas em si um grande negócio para os investidores.
Além das reformas trabalhistas para assegurarem a máxima produtividade à mudança tecnológica e à reorganização do sistema produtivo, as mudanças institucionais também atuam na fragilização do sindicato. “Porque o sindicato, junto com o Estado, são peças de resistência”, aponta Ganz. “A reforma ataca as duas coisas: sindicatos e intervenção do Estado na relação de trabalho.”
Renovação política e demografia
As demais dimensões que o novo governo deve considerar na sua agenda de prioridades, segundo o diretor técnico do Dieese, são eixos estruturantes do “futuro do trabalho”, tema da OIT para a comemoração dos cem anos da entidade, que se completam em 2019. As diferentes projeções para o horizonte que resultará dessas transformações indicam que pelo menos um terço (1/3), no caso das previsões mais conservadoras, ou, nas mais arrojada, até 70% das ocupações atuais não existirão nos próximos dez anos.
Os outros dois aspectos críticos, diz Ganz, são a mudança demográfica – e a ausência dos jovens no movimento sindical – e a sustentabilidade ambiental. “Somos um sindicalismo com dirigentes da terceira fase da vida. A juventude está fora dos sindicatos. Se estivéssemos em 2050, elegendo a presidenta da maior central sindical unitária brasileira, e fosse uma pessoa preparada, com 50 anos, hoje, essa pessoa — digamos, a Maria –, teria uns 20 anos. Se você vai nas reuniões do movimento sindical, raramente encontra a Maria com 20 anos naquele meio. E o mais preocupante: essa questão não tem sido um eixo sindical para enfrentar esse futuro.”
O que o diretor do Dieese propõe é abrir ao movimento sindical a responsabilidade de colocar como sua tarefa a presença daqueles que vão construir esse futuro. “A mudança demográfica precisa ser incluída na nossa estratégia”, diz. “Esse futuro exige resposta. Os jovens engenheiros é que vão construir esse futuro e as respostas para problemas que ainda não temos ideia quais serão. Vão cometer erros, como nós cometemos, mas aprender com eles e fazer como nós fizemos. E não fizemos pouca coisa.Temos um presidente preso, porque é o resultado de uma luta, a declaração de guerra de quem não aceita o resultado desta construção.”
A engenharia
Já do ponto de vista ambiental e do desafio climático, Ganz destaca o papel fundamental do conhecimento da engenharia. “Seja para consertar o que já destruimos ou para reconstruir”. A engenharia, diz, é um dos principais eixos capazes de propor soluções a problemas complexos do país.
“Quando pensamos em engenharia, sempre me vem a ideia de que uma sociedade que tem um pensamento de engenharia desenvolvido é uma sociedade que reuniu capacidade para resolver problemas complexos”, afirma. “A engenharia é uma síntese da capacidade cognitiva de observar problemas e se colocar propostas de construção de soluções que parem em pé, sejam viáveis, perdurem no tempo e gerem respostas. Isso não é um pensamento qualquer. Um país que abre mão do pensamento de engenharia abre mão de buscar soluções para o desenvolvimento. O país não pode abrir mão do desafio de formular um pensamento de engenharia porque é aquele que é capaz de construir as alternativas para o futuro.”
A saída, em um governo progressista, diz ele, precisa vir acompanhada de um suporte político capaz de dar ao ‘terceiro turno’ a efetividade que coloque o desenvolvimento como eixo estruturante, o que vai requisitar da sociedade uma intervenção muito forte. “Os engenheiros são protagonistas de primeira ordem, fundamentais para a disputa que faremos pela frente. Nosso papel é fazer com que as mudanças tragam bem estar, qualidade de vida e sustentabilidade ambiental.”
_ Clemente Ganz, diretor técnico do Dieese, participou do VII Simpósio SOS Brasil Soberano – A engenharia, as eleições e o desenvolvimento do Brasil, no dia 21 de setembro, no Rio, realizado pelo Movimento SOS Brasil Soberano, iniciativa do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e da Federação Interestadual dos Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), com apoio da Mútua e da Carta Capital. O evento também contou com palestras do economista Paulo Nogueira Batista Jr. e do ex-ministro Celso Amorim, e comemorou os 25 anos de fundação da Fisenge.
Texto: Verônica Couto
Foto: Ato por empregos no Comperj (7/12/2017) – Ricardo Stuckert