Copom usa dados sob suspeita de manipulação para justificar fim da queda dos juros; BC impõe sigilo

Expectativa de inflação pode ter sido manipulada por bancos para conter queda da taxa básica de juros da economia

Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) usou dados que podem ter sido manipulados por bancos para justificar sua decisão de manter a taxa básica de juros em 10,5% ao ano tomada na última quarta-feira (19). A informação consta da ata da última reunião do comitê, divulgada nesta terça-feira (25).

Na ata, membros do comitê entenderam que a taxa Selic não deveria ser reduzida porque as expectativas de inflação dos agentes econômicos do país já estariam apontando para uma tendência de aumento de preços. Neste contexto, manter os juros num patamar elevado ajudaria a conter uma eventual alta da inflação.

“A conjuntura atual, caracterizada por um estágio do processo desinflacionário que tende a ser mais lento, ampliação da desancoragem das expectativas de inflação e um cenário global desafiador, demanda serenidade e moderação na condução da política monetária”, diz o órgão, justificando sua decisão.

De acordo com o próprio Copom, as expectativas de inflação consideradas para a decisão são medidas por meio do Boletim Focus. O boletim é elaborado pelo BC com base em previsões encaminhadas por bancos sobre indicadores econômicos, incluindo inflação.

Recentemente, economistas levantaram suspeitas de que essas previsões de bancos tenham sido manipuladas para que o Copom, com base nelas, segurasse a taxa básica de juros num patamar mais alto.

No final de maio, o programa ICL Notícias realizou um estudo sobre o Focus indicando a manipulação. Esse estudo foi divulgado no programa, transmitido pelo Youtube, e comentado pelo economista Eduardo Moreira, que trabalhou por anos no mercado financeiro. Após a divulgação do vídeo, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (MP-TCU) pediu que o TCU apure a influência de bancos na Selic.

O Brasil de Fato solicitou ao BC acesso às previsões dos bancos que baseiam o Boletim Focus via Lei de Acesso à Informação (LAI). O BC negou.

Suspeita

No mesmo dia em que o ICL Notícias divulgou seu estudo sobre o Boletim Focus, o economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), postou dados que reforçam a suspeita de manipulação.

Para ele, alguns bancos ouvidos pelo BC para elaboração do Focus podem ter elevado deliberadamente sua previsão sobre inflação. Isso teria aumentado de forma desproporcional a expectativa média sobre o indicador.

Olhando só a média, seria possível entender que os agentes de mercado como um todo estariam apostando numa inflação mais alta, o que justificaria a manutenção da Selic em patamares mais elevados. No entanto, é possível que bancos mal intencionados tenham repassado uma previsão sabidamente exagerada ao BC só para influenciar o Copom.

No início de maio, a mais alta previsão para a inflação de 2024 subiu de 4,66% para 5,74% de um dia para outro. Já a mais alta previsão para a inflação para 2026 saltou de 5,7% para 8%, também de um dia para outro. As mudanças bruscas fogem de padrões tradicionais de alterações de expectativas e parecem ter sido causadas por um movimento de poucos bancos dentre os ouvidos pelo BC.

O movimento, no entanto, acabou alterando a mediana calculada para o Focus. Em abril, o Boletim indicava que os bancos esperavam que a inflação fechasse 2024 em cerca de 3,8%. Hoje, a previsão média é de 3,98%.

Sigilo

Após a divulgação das suspeitas sobre o Focus, o Brasil de Fato questionou o BC sobre o assunto e solicitou uma verificação sobre que banco (ou bancos) teria informado uma previsão de inflação tão alta. O BC não comentou nem repassou qualquer informação.

BdF, então, protocolou um pedido ao BC baseado na LAI solicitando acesso à base completa de previsões enviadas por bancos que basearam todas as edições do Boletim Focus em 2024. O órgão negou acesso aos dados argumentando que eles são “informação passível de gerar vantagem competitiva a outros agentes econômicos”.

Segundo o BC, dados como esses não podem ser divulgados. Isso, inclusive, está previsto no decreto que regulamentou a LAI (Decreto 7.724, de 2012).

BdF recorreu da decisão questionando como as previsões dos bancos poderiam “gerar vantagem competitiva”. O BC argumentou que os dados são produzidos por profissionais, com apoio de estudos e pesquisas desenvolvidos nessas instituições. “Dar publicidade a esses dados pode ter implicações diversas, que podem resultar em vantagens/desvantagens competitivas para as instituições participantes ou outras, concorrentes. Esses dados constituem propriedade intelectual, que possibilita a quem a detém auferir eventuais benefícios, diretos ou indiretos.”

O BC, aliás, divulga periodicamente um ranking dos cinco bancos que mais acertaram previsões enviadas para o Focus. O BdF pediu acesso ao ranking completo, considerando que o banco (ou bancos) que exagerou propositalmente em sua previsão poderia aparecer nas últimas colocações.

O BC negou acesso. “O ranking Top 5, tal como foi concebido, pressupõe a divulgação das instituições que obtiveram melhores resultados com as suas projeções. Os participantes estão cientes e de acordo e não há, portanto, quebra de confidencialidade quando o BC faz a divulgação”, argumentou. “A divulgação dos rankings completos traria impactos bastante diferentes. Esse tipo de exposição não foi previsto pelos participantes, que não autorizaram a divulgação de seu resultado nessas condições.”

Críticas

Para Roncaglia, o BC não poderia impor sigilo sobre as informações do Focus. “Os dados são usados para basear uma política pública, a política monetária. Não há motivo para que eles não sejam públicos.”

O economista ainda ressaltou que, ao mantê-los sob sigilo, o BC não só dificulta qualquer apuração sobre eventuais manipulações e fraudes como as facilita. “A proteção dos dados sobre o boletim acaba avalizando a possibilidade de fraude.”

Roncaglia lembrou que a eventual manipulação do Boletim Focus não seria um caso isolado. Em 2016, a Justiça de Nova York condenou executivos de grandes bancos por manipulação da chamada taxa Libor, usada para remunerar investimentos. Por conta da fraude constatada, a taxa acabou sendo extinta.

Procurado para comentar o fato de o Copom usar informações sob suspeita de manipulação e sendo investigadas pelo MP-TCU para decidir a Selic, o Banco Central não se pronunciou. Também não comentou o que tem feito para minimizar a possibilidade de fraude nas informações que baseiam o Boletim Focus.

 

Fonte: Brasil de Fato | Texto: Vinícius Konchinski | Edição: Nicolau Soares | Foto: Rafa Neddemeyer/Agência Brasil

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