‘Decodificando a Extrema-Direita’ entrega à sociedade a produção acadêmica no entendimento do fascismo no Brasil e no mundo

Em lançamento na Casa Dirce, Michel Gherman, Christina Vital e David Nemer falaram sobre o letramento fascista pelos olhares da sociologia, antropologia e história

No último dia 22 de agosto, o lançamento do documentário ‘Decodificando a Extrema-Direita’ reuniu, na Casa Dirce, em Botafogo, acadêmicos, universitários, sindicalistas e representantes da sociedade civil para a primeira exibição do média-metragem ao público.

Parte de um projeto de pesquisa desenvolvido nos últimos anos pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos (NIEJ/UFRJ), o filme produzido pela KPZ Produções com o apoio do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) trata de temas como conspiração, guerra cultural, gramática e outras perspectivas fundamentais para entender o fenômeno fascista que vem se consolidando e ganhando espaço no Brasil, Argentina, Chile, Estados Unidos e Europa.

Estrategicamente dividido em blocos temáticos, o documentário foi pensado para a publicação na íntegra ou em vídeos curtos, com cerca de 8 minutos. O Senge RJ, que acompanhou a produção desde o início, foi representado no lançamento por Olímpio Alves dos Santos e Clóvis Nascimento, presidente e vice-presidente do sindicato, respectivamente.

Como avança a extrema-direita

O fio condutor do documentário é o que o historiador e pesquisador Michel Gherman chama de ‘gramática fascista’, um conjunto de estruturas que dão sentido a uma linguagem com gestos, palavras, comportamentos e sinais que construíram um letramento sofisticado do fascismo e através do qual ele ganha espaço entre as massas. 

A cientista social Christina Vital, que dividiu a mesa de debate após a exibição do documentário com Gherman e o antropólogo David Nemer, falou sobre como se dá a aproximação, pelo campo estético, de lideranças religiosas e seus seguidores em redes sociais com o discurso fascista. A professora do departamento de Sociologia da UFRJ e coordenadora do Núcleo de Política, Religião e Violência, destaca uma dinâmica que conquista mentes e corações pela identificação com os conteúdos destes influenciadores.

“A gente observou em pesquisa que as várias lideranças que compõem o universo de extrema-direita, muitos deles religiosos, operam de tal modo a produzir uma ligação com as pessoas a partir da apresentação do seu dia a dia. Quando chega o período eleitoral, essas lideranças se aproximam das figuras de extrema-direita, quase que naturalmente, por elementos que têm a ver com estilo de vida, saúde, estética”, destacou. À esquerda, a professora cita Erika Hilton como alguém que entendeu o poder da estética na aproximação com o público.

Michel Gherman, produtor do documentário ao lado dos cineastas Felipe Godinho, Antonio Ribas e Cazian Canellas, destacou a apropriação de símbolos pelo chamado ‘sionismo cristão’ em um fenômeno que vai além dele: o do letramento. “Me lembro do susto que tomei quando vi uma bandeira de Israel em uma manifestação pelo impeachment de Dilma, em 2013. Aquelas pessoas estavam letradas em uma perspectiva que eu não entendia até então. Esse não é mais um debate sobre um sionismo cristão de fato, mas sobre um letramento da extrema-direita que está utilizando referências dos estudos judaicos para favorecer as suas experiências. Usam a imagem da branquitude do judaísmo, do judeu armado, violento, ultracapitalista. Hoje, eles não negam mais o Holocausto. O que eles negam é o genocídio. Esse é o tamanho do buraco”, explicou Michel.

No que diz respeito às ferramentas por onde a gramática fascista se espalha, Davi Nemer, com formação em antropologia e ciência da computação – a chamada ‘antropologia da tecnologia’ -, destaca que os fenômenos fascistas seriam inviáveis sem um forte braço na comunicação: “Há uma instrumentalização da extrema-direita através da tecnologia. É impossível falar de Hitler sem falar de Goebbels. É impossível falar de Mussolini sem falar da forma como ele se apropriou dos meios de comunicação em massa. Impossível falar de Bolsonaro sem falar nas redes sociais, principalmente Whatsapp e Facebook, onde mais se compartilha a desinformação que promove a extrema-direita”.

Nemer apontou que, mais uma vez, a extrema direita de hoje tem as mídias e tecnologias usadas para alcançar mais pessoas. “É um novo espaço que não é estatizado, mas que joga com o Estado para promover uma desregulamentação do mundo. É justamente esse embate que vemos quando Arthur Lira enterra o Projeto de Lei erroneamente chamado de PL das Fake News, que iria responsabilizar as big techs pelos conteúdos que distribuem”, lembrou Nemer. 

Conceitos em discussão

Embora o estudo dos métodos da extrema-direita não seja novo, no caso do fascismo que domina parte da população brasileira, uma experiência única e especialmente potente, dado o apoio religioso, há conceitos que ainda estão em debate. Vital apontou a importância de repensar a ideia de “fundamentalismo”, usada para designar religiosos de extrema-direita. Comum no campo da esquerda, o adjetivo, segundo a professora, acaba sendo um “tiro no pé”, uma vez que, do outro lado, o entendimento da expressão é inverso. 

“Trabalhei acompanhando a frente parlamentar evangélica. Entrevistamos Bolsonaro, Damares Alves, Pastor Everaldo e, em todos esses processos, vim trabalhando a diferenciação, do ponto de vista analítico, do que se vinha chamando de ‘fundamentalismo’ e pensando o uso do termo ‘extremista’. O que parecia uma diferença de conceituação é muito importante do ponto de vista político. O termo fortalecia a ideia de que essas lideranças religiosas eram os verdadeiros evangélicos, que estavam defendendo os fundamentos da fé. Ao produzir a fala de que eles são fundamentalistas, estamos colocando uma força narrativa e um capital nas mãos dessas lideranças”, explicou a professora.  

Gherman também destacou o uso inadequado de uma expressão que se tornou bastante conhecida nos últimos anos: o “apito de cachorro”, gestos, símbolos e formas de comunicação que alguém usa para se conectar com o outro, que entende o sinal e passa a integrar determinada ação e espalhar as ideias “apitadas”. Para Michel, o engano também pode ser visto nos estudos sobre o Nazismo e o Holocausto, quando o segundo é usado como referência e não o primeiro. 

“A ideia do Holocausto como fenômeno da sociedade do espetáculo, do ódio, da morte, não nos ensina. O que nos ensina sobre o que houve no Holocausto é a ascensão do nazismo, que se produziu a partir de um letramento, não de apito de cachorro. Ele – o apito – fazia sentido quando o nazismo estava relacionado a grupos específicos que se reproduziam entre si. Não é o que está acontecendo hoje. Quando o Felipe Martins faz um símbolo de supremacia branca na frente de todo mundo, ele não está fazendo para se comunicar com os seus, mas para se comunicar com outros. Ele está letrando, produzindo a ideia de que as pessoas vão procurar em lugares que estão à mão o que significa aquele símbolo. E esses lugares são as redes sociais. Não precisa mais ir à biblioteca”, destacou Gherman, a respeito do símbolo de conotação racista que o então assessor de Assuntos Internacionais da Presidência da República do governo Bolsonaro fez para as câmeras durante sessão do Senado Federal.

“Esse letramento acaba produzindo pessoas que não conheciam essa referência e que passam a fazer parte dessa comunidade política por causa de alguém que letrou. Isso não é novo. A gente pode estudar a história do nazismo tradicional e clássico e perceber como ele pode ajudar a discutir este fenômeno hoje”, apontou o historiador.

 

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Revisão: Lidia Pena

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