Demolição de Museu do Índio contraria técnicos

Técnicos de órgãos das três esferas de governo ligados à preservação de patrimônio

Fonte: BBC Brasil

Técnicos de órgãos das três esferas de governo (federal, estadual e municipal) ligados à preservação de patrimônio público manifestaram objeções à demolição da chamada Aldeia Maracanã – onde, por quase 25 anos, funcionou o Museu do Índio -, em documentos à disposição da Defensoria Pública da União (DPU), que tenta evitar a derrubada e a retirada dos índios do local.

Uma declaração da ministra da Cultura, Marta Suplicy, nesta quarta-feira, aumentou a pressão sobre o governo do Estado do Rio de Janeiro pela preservação do prédio. Marta afirma que o Iphan recomendou o tombamento do prédio.

Já em pareceres e estudos realizados entre 2006 e 2012, o Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan), o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Estado do Rio de Janeiro (Inepac) e o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Município do Rio desencorajaram a derrubada do prédio, construído no início do século 19.

O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea-RJ), que fiscaliza e controla atividades como engenharia e arquitetura, também emitiu parecer contrário à demolição.

Estes documentos fazem parte do dossiê – a que a BBC Brasil teve acesso – em defesa da Aldeia Maracanã, enviado pela DPU à Advocacia Geral da União e à Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. A Secretaria de Direitos Humanos aguarda um parecer da AGU sobre se deve ou não entrar no caso.

Na sexta-feira, as famílias indígenas que ocupam desde 2006 o antigo Museu do Índio, nas proximidades do estádio do Maracanã, na zona norte do Rio de Janeiro, receberam uma notificação extrajudicial da Procuradoria Geral do Estado que estabelece um prazo de dez dias para que eles se retirem do local, sob ameaça de despejo.

‘Bonito’

Em documento datado de novembro de 2006, o Iphan, através de seu escritório no Rio, repudiava “a princípio, propostas que tencionem arrasar definitivamente a edificação, que ainda sobrevive, em prol da construção de estacionamentos ou similares”.

O ofício era uma resposta à organização não-governamental Filhos da Terra, que pedia o tombamento do imóvel e mostrava a intenção de instalar ali um centro cultural.

Já o Inepac, em ofício de outubro de 2010, informa que “realizou estudos com vistas à instrução de tombamento” do imóvel, mas que, “por motivos alheios à nossa vontade, não houve prosseguimento nas esferas superiores.”

Procurada pela BBC Brasil, a então diretora-geral do Inepac, Maria Regina Pontim Mattos (hoje técnica da instituição), que assinou o documento na época, explicou o porquê de não haver prosseguimento no pedido de tombamento.

“Este foi o primeiro projeto (de tombamento) que examinei como diretora-geral. A gente achava que havia características do prédio que eram importantes, que havia condições de ser preservado, era bonito, estava muito mais íntegro do que agora e não estava ocupado. Mas naquele momento havia uma preocupação da Secretaria (de Cultura) de não fazer tombamentos novos, e sim de rever tombamentos provisórios para que se tornassem definitivos”.

“Mas nesse momento, não posso falar mais pela instituição”, acrescentou, ao recomendar à BBC Brasil procurar o atual diretor-geral do Inepac, Paulo Eduardo Vidal Leite Ribeiro.

O pedido de entrevista com o diretor foi negado pela Secretaria Estadual de Cultura, que responde pelo órgão. A Secretaria enviou comunicado à BBC no qual informa que no passado foram feitas tanto uma “pesquisa histórica”, em 1977, como a recomendação de “continuação dos estudos dentro do próprio Instituto”, em 1997, sobre o imóvel.

No entanto, a Secretaria ressalta que “não há fichas de inventário ou quaisquer procedimentos administrativos que possam caracterizar a abertura de um Processo de Tombamento” e que “não se pode afirmar que o INEPAC ‘pretendia tombar o imóvel'”.

Procurado pela BBC, o Iphan informou que não se pronunciaria sobre prédios que não foram tombados – e que a divulgação do ofício em que desestimula a demolição seria de responsabilidade da Defensoria Pública da União.

‘Interesse político’

Além dos órgãos diretamente ligados ao patrimônio público, o Crea também se posicionou contrariamente à demolição, em um relatório de outubro do ano passado, quando o embate jurídico em relação ao destino do prédio já havia começado.

De acordo com a entidade, o edifício se encontra em “razoável estado de conservação”. O Crea sugeria a “restauração completa” e sua “transformação em Centro Cultural Indígena”.

O defensor público federal André da Silva Ordacgy afirma que “este é um caso claro em que o interesse político se sobrepõe ao caráter técnico”.

“Ninguém entendeu até agora porque o (governador do Rio, Sérgio) Cabral quer tanto demolir aquilo ali”, diz Ordacgy.

O defensor afirma que a demolição contraria a legislação municipal do Rio de Janeiro. Um decreto determina que derrubadas e alterações de imóveis construídos antes de 1937 só podem ser autorizadas após um pronunciamento favorável do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural.

Mas, em dezembro, o conselho decidiu o contrário, por unanimidade. Assim mesmo, o prefeito Eduardo Paes autorizou a Empresa de Obras Públicas do Estado a derrubar o imóvel.

“A palavra do político não pode ter mais peso do que um decreto municipal”, questiona o defensor.

‘Referência, sim’

O atual diretor do Museu do Índio, José Carlos Levinho, lamenta a polarização em torno da Aldeia Maracanã e questiona a retirada dos índios e a derrubada da antiga sede.

“O prédio em si é uma referência, sim, para a cidade. A população por muitos anos reconheceu naquele lugar o Museu do Índio. Até hoje, aliás. E perder referências é muito ruim. Por outro lado, não adianta manter e não preservar. Temos que pensar em como iluminar nossas referências”, reflete.

Levinho diz ainda que o poder público deveria aproveitar esta crise para adotar uma solução exemplar quanto aos direitos dos índios.

“A questão é muito complexa e está muito judicializada. A direção da Funai está acompanhando o assunto. E a Procuradoria Federal também está à disposição. Temos que acompanhar para que nenhum direito dos índios seja violado”.

Nesta quarta-feira, a ministra da Cultura, Marta Suplicy, adicionou pressão pela preservação do antigo Museu do Índio e a não expulsão dos ocupantes.

“Esperamos que prevaleçam o interesse na preservação do patrimônio material e imaterial e a sensibilidade do governo do Estado”, disse a ministra, após uma conversa com o governador em exercício do Rio, Luiz Fernando Pezão, na qual informou que o Iphan já recomendou ao Estado o tombamento do imóvel.

Contagem regressiva

Com a entrega da notificação extrajudicial feita na sexta-feira, a expectativa é de que o Governo do Estado do Rio entre com ação, já na próxima semana, para reintegração de posse. A decisão no Judiciário está nas mãos do Tribunal Regional Federal (TRF).

Em dezembro, a presidente do órgão, juíza Maria Helena Cisne, cassou duas liminares que pediam a suspensão da retirada; em janeiro, o presidente em exercício do TRF, Raldênio Bonifacio Costa, deu dez dias para que a Advocacia Geral da União se manifestasse sobre o caso, o que garantiu mais tempo à ocupação.

“Mas a presidente do TRF não parece ter pressa e não dá qualquer sinal de que levará o caso às sessões mensais do colegiado do órgão. Isso prejudica os índios, porque sem uma decisão do colegiado, o caso pode ficar parado por anos, e prevalece a suspensão das liminares que nós e o Ministério Público apresentamos”, diz o defensor público André da Silva Ordacgy.

Na prática, com a manutenção da decisão anterior da juíza Maria Helena Cisne, tanto os índios podem ser retirados quanto o prédio pode ser demolido já na próxima semana.

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