Embora o processo de desdolarização tenha avançado significativamente no lado comercial e real da economia com o uso crescente de moedas locais, o dólar mantém sua completa dominância no setor financeiro global, criando uma “armadilha” onde outras nações precisam acumular reservas que financiam a dívida pública dos Estados Unidos. O diagnóstico é da economista Juliane Furno, feito no último dia de debates da Primeira Cúpula Popular do Brics nesta quarta-feira (3) no Rio de Janeiro.
“Se dividirmos a economia em dois lados, no real, das transações comerciais, a desdolarização avançou muito. Praticamente 100% das relações comerciais com a China são em moedas locais, para compra ou venda”, disse ela.
“Mas do ponto de vista financeiro, aí a gente tem uma completa solidez do dólar. Esse é o maior desafio, porque os países do Sul Global, da Europa Ocidental também, estão presos no que a gente chama de armadilha do dólar”, explica a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ela lembra que desde a globalização da década de 1990, as economias deixaram de tributar capital que entra e sai, tornando-se mais vulneráveis à variação cambial. Para se defender disso, os países precisam acumular reservas internacionais, em dólar.
“Essa é a armadilha, para se protegerem os países precisam financiar a dívida pública americana, suas guerras. E é muito difícil sair porque a China, por exemplo, tem trilhões de dólares aplicados na dívida pública americana e se sair dessa posição, desvaloriza o dólar e, consequentemente, sua riqueza acumulada”, conclui Furno.
A economista diz que uma saída dessa arapuca inclui trocar as reservas em dólar por ouro “e desenvolver uma nova arquitetura financeira, incluindo sistemas de pagamentos transfronteiriços que contornem o sistema Swift”.
“O principal desafio sistêmico reside em criar um sistema de valor que não dependa de uma única moeda, sendo que a precificação de commodities estratégicas, como petróleo e gás, em moedas locais ou em uma cesta de moedas pode ser o fator-chave para desestabilizar a primazia do dólar.”
“Há um movimento, liderado principalmente pela China e Rússia, de venda de títulos da dívida pública [norte] americana e ampliação da cota de ouro nas reservas dos bancos centrais. O Brasil também tem comprado ouro e euro, mas isso ainda é incipiente no agregado”, explica.
“No agregado global, o dólar é totalmente hegemônico: nas operações cambiais, 88% delas envolvem o dólar em um dos lados. O ouro representa menos de 10% das reservas internacionais globais.”
A dificuldade de criar uma nova arquitetura financeira
O Banco do Brics, apesar de ter vontade política, opera majoritariamente em dólar em seus empréstimos, com exceções de francos suíços ou euros, mas não moedas locais. “Há uma expectativa e vontade política de ampliar para 30% o financiamento em moedas locais, mas isso é um desafio enorme devido à complexa mecânica envolvida”, explica a economista.
“O Banco dos Brics está atrelado ao mercado internacional de capitais e ao sistema monetário. Ele capta em dólar, que tem a menor taxa de referência. Para emprestar em moedas locais, o Banco teria que realizar a proteção (hedge) contra a volatilidade cambial, o que é difícil, pois os países tomadores teriam que pagar em dólar e a moeda local poderia se desvalorizar.”
A China, maior economia do Sul Global, não deseja que sua moeda, o renminbi (ou yuan) rivalize com o dólar no sistema global, para não abrir mão de seu controle.
“Nem a China quer cumprir este papel, nem é a perspectiva ideal trocar uma moeda hegemônica por outra. O objetivo é construir uma economia que possa precificar suas mercadorias em uma cesta de moedas.”
O fator petróleo
No entanto, ela explica como o petróleo tanto ajudou a consolidar o dólar globalmente na metade do século 20 como pode, nos próximos anos, acelerar a desdolarização. “Antes de Bretton Woods, no final dos anos 1930, os Estados Unidos identificaram a mudança do eixo dinâmico da produção de petróleo para o Oriente Médio”, diz ela.
“Criaram um mecanismo de financiamento para a Arábia Saudita, garantindo que o pagamento desse financiamento fosse feito em dólar, ampliando assim os países dentro do espectro monetário do dólar. Posteriormente, na década de 1970, estabeleceu-se o mecanismo dos petrodólares, onde a Arábia Saudita reciclava seus lucros em títulos da dívida pública dos EUA, em troca de proteção militar”, continua.
“A moeda em que as fontes de energia são cotadas confere um “privilégio exorbitante de sustentação da moeda de reserva”. Furno diz que “atualmente, essa dinâmica pode ser usada como um caminho para acelerar a desdolarização”.
“Se as commodities estratégicas, incluindo terras raras e o petróleo/gás, puderem ser precificadas em outras moedas locais ou em uma cesta de moedas que pondere o valor de cada uma, o processo seria acelerado.”
“A Rússia, por exemplo, pode precificar o gás e o petróleo exportado para a Índia em moeda local. O Sul Global é composto por grandes produtores de petróleo, e a Venezuela, que tem a maior reserva de petróleo do mundo, está disposta a integrar o Brics. Assim como o petróleo garantiu a hegemonia do dólar para os EUA, ele pode ser uma fonte de desestabilização dessa hegemonia para o Sul Global”, conclui.
Fonte: Brasil de Fato | Editado por: Nathallia Fonseca
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil