Via Brasil de Fato
Para Lúcia Xavier Castro, da Ong Criola, feriado vai na contramão da ideia de que negros e brancos convivem em harmonia
Na programação da Feira Literária de Paraty (Flip) deste ano não se viam escritores negros entre os convidados. No entanto, a seleção feita pelo curador Paulo Werneck, que coordena o evento há três edições, não passou despercebida. Parte do público e militantes do movimento negro fizeram duras críticas, que engrossaram a demanda por representatividade negra na principal feira literária do país. Após muitos protestos, foi anunciado que o escritor Lima Barreto seria o homenageado da Flip em 2017.
Negro, filho de uma família pobre, Lima Barreto tornou-se jornalista e em seus livros retratou um olhar crítico sobre as injustiças sociais do Brasil e o preconceito de cor do qual também foi vítima. A história da escolha do escritor como homenageado da Flip ilustra muito bem o cotidiano da população negra no país: ao mesmo tempo em que vivencia avanços, o racismo mostra que ainda há uma grande distância a ser percorrida para a conquista da igualdade.
Nesse sentido, para os movimentos negros, o Dia da Consciência Negra, não é um feriado de descanso, mas de luta e mobilização. Instituído em âmbito nacional em 2011, é considerado feriado em mais de mil cidades brasileiras. No Rio de Janeiro, assim como no Mato Grosso, Alagoas, Amazonas e Amapá, também abrange todo o estado. Ele é comemorado no dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, liderança do Quilombo dos Palmares, para simbolizar a luta do negro contra a escravidão.
“Esse dia tem a ver com a visibilidade da questão racial, sobretudo para os problemas que os negros ainda enfrentam na sociedade brasileira. Vai na contramão da ideia de que o país não é racista. Contra aquela ideia de que negros e brancos convivem em harmonia. É a afirmação do legado de um país que renega a população negra e não quer vê-la incluída como cidadã”, afirma Lúcia Xavier Castro, fundadora do Ong Criola, que atua na defesa e promoção de direitos das mulheres negras.
Debate racial
Nos últimos anos, as pautas do movimento negro estão em evidência, tornando-se reivindicação não só de quem é militante. A tarefa dos movimentos tem sido, justamente, manter o debate racial aceso o tempo todo. Para Caroline Lopes, estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Coletivo Negro Carolina de Jesus, isso é a maior necessidade do movimento porque a violência contra o negro não tem descanso.
“Nós temos conquistas cada vez mais sólidas, como a política de ações afirmativas que nos trouxe para dentro da universidade, mas os desafios são ainda maiores. Isso porque as organizações racistas e fascistas estão cada vez mais fortes. Além disso, é importante lembrar que ao mesmo tempo que temos centenas de pessoas negras entrando na universidade, temos um ingresso muito maior no sistema prisional e nos cemitérios”, afirma.
Para lutar contra os números oficiais que ainda colocam os negros entre os que são mais pobres e mais mortos no país, o movimento negro tem se diversificado. Segundo a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Giovana Xavier, nos últimos anos, o movimento se organizou através da juventude negra universitária, coletivos de mulheres negras, ativismo virtual negro, até mesmo a partir dos partidos políticos de esquerda que têm setoriais negros mais fortes. Para ela, o movimento está trabalhando em novas vertentes e assim conseguindo chegar a mais pessoas.
“Hoje, um vocabulário que antes era apenas usado por militantes, está sendo acessado independente da pessoa fazer parte de um movimento social. Dizer empoderar faz sentido para muito mais gente. As velhas pautas estão sendo repensadas com outras roupagens, nesse sentido, precisamos pensar que militância não é só o cara de camisa vermelha que está na rua distribuindo panfletos, há outras formas de atingir ainda mais pessoas”, garante.
Afirmação da negritude
Um exemplo citado pela professora é a Feira Preta, que acontece nos dias 26 e 27 de novembro no Museu de Arte do Rio (MAR), na Praça Mauá. O evento reúne empreendedores negros que trazem nos seus produtos, entre roupas, cosméticos e livros, a denúncia ao racismo no mercado e uma outra opção para quem quer afirmar a negritude. “Tem a ver com o orgulho de ser quem você é e influenciar outras pessoas a também afirmarem suas identidades negras”, acrescenta Giovana.
Na última semana, a Umbanda foi incluída na lista de patrimônios imateriais da cidade do Rio de Janeiro, por meio de decreto, ao lado de 54 bens, como a Bossa Nova, blocos de carnaval e a Procissão de São Sebastião. A ideia agora é cadastrar todos os terreiros de umbanda da cidade e promover políticas públicas de salvaguarda desses espaços.
Genocídio negro
Esse é um dos episódios que ilustra mais uma conquista da cultura negra. Segundo Lúcia Xavier, é estratégia para fortalecer, mas não significa que será o fim da intolerância. Para ela, a principal conquista dos últimos anos foi a compreensão de que o racismo é um problema da sociedade. “Só a partir dessa compreensão podemos encarar o problema de frente. O movimento negro tem um papel didático nesse sentido, ao reforçar uma agenda política onde sejamos obrigados a colocar a questão do racismo e do genocídio negro em pauta”, explica.
Caroline Lopes acredita que uma vitória complementar a afirmação do racismo é o reconhecimento do genocídio negro. “Hoje o estado é obrigado a reconhecer que há uma seletividade institucional, policial, social do povo negro, que mata e muito por causa da cor da pele”, acrescenta.
Para a estudante, é importante ressaltar que o movimento negro está ganhando novo fôlego através dos estudantes que ingressaram nas universidades públicas. Um exemplo disso foi a última edição do Encontro Nacional de Estudantes e Coletivos Universitários Negros (EECUN). “Estamos com pessoas produzindo e formulando ciência em várias áreas do conhecimento que retornarão nos próximos anos para a população negra de todo o país a fim de dar conta das demandas que precisam tanto”, conclui.