A ameaça representada pela ascensão da extrema direita em todo o mundo é resultado de um complexo quadro de crise das democracias. O Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro vem reunindo intelectuais, atores políticos e movimentos sociais para pensar caminhos para a superação desta crise que, pela primeira vez na história, ameaça a própria civilização em um planeta exaurido e profundamente transformado pelo capitalismo tardio.
No último dia 27 de novembro, os convidados para o debate foram as jornalistas Dayane dos Santos e Hildegard Angel, ambas do Brasil 247, o professor Boaventura de Sousa Santos e o ex-ministro, ex-prefeito e ex-deputado federal Tarso Genro. A ideia era promover um debate que buscasse na mídia alternativa, na academia e na gestão pública experiências e saberes que colaborem no esperançar de um futuro possível.
As conjunturas apresentadas no evento, acompanhado por grande público presencialmente no auditório do Senge RJ e em transmissão ao vivo, foram variadas e complementares, construindo um diagnóstico profundo da crise democrática contemporânea e apontando possíveis saídas.
O interregno: entre o velho que não morreu e o novo que não nasceu
As grandes transformações do mundo ocorreram por duas vias: pelas guerras e pelas revoluções. O momento atual, que exige grandes transformações, ainda pode ser repensado por outros caminhos. A aposta do professor Boaventura de Sousa Santos é a refundação da democracia. Não precisamos, ele aponta, de uma Terceira Guerra Mundial. As revoluções não estão na agenda: os que costumavam contestar o sistema parecem satisfeitos com ele ou, por algum motivo, não o contestam.
“Estamos à beira de um colapso ecológico. Em 2050, metade da população mundial não terá água potável. Teremos 78 milhões de refugiados ambientais. Como resolveremos? Penso que cada geração luta com as armas que tem e, hoje, o que temos é a democracia”, destaca o professor.
Evidenciando os avanços da extrema-direita no Brasil, em Portugal e no mundo, Boaventura cita Gramsci, caracterizando o momento como o interregno em que “o velho morreu e o novo ainda não nasceu”. É um tempo de crises permanentes impostas pelo neoliberalismo, que precisa delas para prosperar. O resultado direto disso é um desequilíbrio entre medo e esperança: a maioria da população mundial vive hoje com muito medo e pouca esperança, enquanto os pouquíssimos super ricos vivem apenas com esperança e sem medo algum.
“Para devolver a esperança para a maioria, precisamos criar, novamente, o medo entre as minorias. No princípio do século XX, havia o movimento operário, o movimento anarquista, a agitação social. É por isso que a luta de classes nunca foi tão necessária e, ao mesmo tempo, tão ausente”, explica.
A quebra do sujeito revolucionário e a crise dos partidos
Tarso Genro complementou o diagnóstico de Boaventura remontando à década de 1980, período em que já era visível o desmantelamento da estrutura de classes tradicional da sociedade brasileira, embora ainda não houvesse formulações teóricas suficientemente claras para orientar os partidos políticos, a academia e as lideranças. Naquela época, em Porto Alegre, ele e Boaventura debatiam “a crise do sindicalismo e a regeneração da solidariedade”, antecipando transformações que estavam por vir.
O ex-ministro destacou que aquele momento identificava a quebra do sujeito revolucionário da fábrica moderna, que antes irradiava a democracia sindical e a luta por direitos. A partir daí, a discussão dentro da esquerda mudou, mas de forma pausada e tímida. Nenhum partido político, segundo ele, compreendeu a totalidade do fenômeno em curso: não apenas a estrutura social estava mudando, mas também os processos culturais, mentais, psicológicos e organizativos. A sociedade em rede, que hoje se acentua, ainda não era vista com clareza, e os partidos continuaram operando de cima para baixo, enquanto a direita conservadora passou a se organizar horizontalmente, sem líderes centralizados.
Tarso analisou o surgimento do que Boaventura chamou de “fascismo societal”, que se instala primeiro na sociedade, nos hábitos, na academia e na cultura, antes de se tornar uma ordem política. Diferentemente do nazi-fascismo histórico, o fascismo atual não se concentra em um único partido, mas opera de forma fragmentária, com múltiplos pontos de apoio organizados ideológica, monetária ou profissionalmente. Nesse contexto, o Partido dos Trabalhadores sobreviveu graças à excepcionalidade de Lula, que diferentemente de outros líderes sindicais históricos, não fracassou ao migrar para a política, combinando instinto de classe com capacidade de negociação e ampliação política.
A reflexão do ex-ministro abordou também as transformações no mundo do trabalho. Ele observa nos jovens uma rejeição à CLT, vista como algo que contém a capacidade de ascensão social. Essa consciência, formada pela mudança na estrutura produtiva, não foi acompanhada de uma consciência revolucionária. O modo de vida das pessoas se tornou fragmentado e desorientado, e sem uma orientação consciente baseada em valores, não haverá formação de grandes grupos de resistência às ofensivas contra a democracia. Para Tarso, é preciso que a ideia se transforme em organização e capacidade de combate, não esperando passivamente que a história se desenrole sozinha.
A batalha pela comunicação e o domínio da narrativa
Diante desse quadro de fragmentação social e crise da representação política, as jornalistas Dayane dos Santos e Hildegard Angel trouxeram para o debate a dimensão comunicacional da crise democrática. Nas últimas décadas, enquanto a mídia progressista lutava para construir seu espaço junto ao povo, partidos políticos e movimentos sociais reduziram seus investimentos em comunicação. Dayane aponta este erro estratégico como fundamental para o domínio da narrativa por parte da mídia hegemônica, que capitaneou o impeachment da presidenta Dilma Rousseff e a prisão do presidente Lula.
A jornalista, que cresceu na periferia de São Paulo e passou dez anos no movimento sindical antes de chegar à bancada do Brasil 247, destacou o alicerce imprescindível da democracia representada pela mídia independente. Se o capital já ameaçava esse alicerce no passado, hoje, com as grandes empresas multinacionais de tecnologia e comunicação, o cenário se agrava.
“O que vemos hoje é a instrumentalização das big techs pela extrema-direita, em uma disputa, uma batalha pelo algoritmo. Somado a isso, há a atuação da extrema-direita por meio das igrejas. Mesmo um governo como o do presidente Lula, que realizou uma revolução no país, pegou um país destruído e gerou empregos, reconstruiu a imagem do país lá fora, não é percebido pelo povo, porque a cada esquina há três igrejas”, explica.
Enquanto minguam os investimentos em comunicação à esquerda, cobram militância e participação, e ampliam debates a ponto de perderem efetividade, ao se distanciar do cotidiano das pessoas. Dayane lembra que faltar ao trabalho, viajar para Brasília para pressionar os Poderes, nem sempre é possível. Complementando o raciocínio de Boaventura, aponta que a generalização das pautas e a fragmentação das esquerdas também desmobilizam.
“Se o movimento estudantil não tem refeitório, alojamento, mas está debatendo a Petrobrás, os militantes se afastam. É preciso entender quais são as pautas reais, aquilo que afeta a vida das pessoas. Da mesma forma, é preciso não interditar o debate. Quando recebemos um convidado no Brasil 247, não queremos ofendê-lo, mas fazemos perguntas, mesmo que sejam dolorosas, espinhosas”, defende.
A revolução silenciosa e a mídia que capitaliza a vitória alheia
Hildegard Angel trouxe ao debate uma reflexão sobre o momento histórico vivido na semana anterior ao evento: a prisão dos generais envolvidos no 8 de janeiro. Para ela, a semana representou um momento cinematográfico, quase surreal, comparável a um filme da Disney. Tantos que lutaram pela redemocratização do Brasil, que enfrentaram a ditadura e seus desdobramentos ao longo de décadas, finalmente viram a justiça sendo feita com a punição dos generais.
A jornalista destaca que, diferentemente das grandes revoluções, esse momento chegou de forma diluída, em uma marcha lenta que esvaziou a possibilidade de euforia coletiva. Não houve o “Vai Passar” de Chico Buarque, não houve celebração nas ruas. A esperança, que deveria vir acompanhada do medo para criar equilíbrio, chegou sozinha, mastigada paulatinamente, em um desgaste tão grande que nem mesmo os brasileiros mais velhos conseguiram dimensionar a importância revolucionária daquele momento.
Hildegard critica duramente o papel da mídia nesse processo. Enquanto a Globo News capitalizou o momento histórico, mostrando compulsivamente sua importância para o público, a mídia progressista – que fez o trabalho de formiguinha para levar pessoas às ruas – segue desvalorizada pelos próprios políticos que se beneficiam dela. Ministros e autoridades preferem a fila da mídia corporativa, que os desmerece, ao tapete da imprensa alternativa que os apoia.
“Os homens de poder preferem fazer fila para a mídia corporativa que os desmerece. Preferem passar sobre o tapete vermelho da Globo que pisar no carpete do Brasil 247. Estamos ‘dando murro em ponta de faca’, alcançando conquistas à esquerda, mas muito dificilmente a vitória final”, destacou Hildegard.
A reflexão da jornalista vem acompanhada de uma desilusão resignada. Ela usa uma expressão da mãe, Zuzu Angel, “dar murro em ponta de faca”, para descrever a militância progressista no Brasil. É um trabalho que conquista espaço em conta gotas, acumulando mais derrotas que vitórias, criando um couro cada vez mais forte na resistência. Para ela, a esquerda dificilmente terá a vitória final, mas alguém precisa continuar “dando esses murros”.
A democracia participativa como arma de resistência
Diante de todos esses desafios apresentados pelos debatedores – a crise da representação, a fragmentação social, o domínio da narrativa pela mídia hegemônica e pelas big techs, a revolução silenciosa que não se celebra –, o professor Boaventura apresentou seu caminho de esperança: a radicalização da democracia participativa.
O caminho para superar a transformação inevitável sem guerras e revoluções é, segundo o professor, a radicalização da democracia participativa e a reversão da partidarização da mesma. Isso porque a democracia participativa só funciona se as pessoas forem às reuniões porque são parte da comunidade, porque estão interessadas, não porque são de determinado partido.
“Seja de direita ou de esquerda, de um partido ou de outro, todos querem iluminação pública eficaz, porque querem creches, porque querem saneamento. Ela também precisa ter resultados. Porque um trabalhador que sai às quatro da manhã e volta às dez da noite, só comparecerá a encontros com a comunidade se ele tiver certeza que dará resultados”, defende.
Essa democracia, segundo Boaventura, depende também de democratas dispostos a defendê-la com um pé na institucionalidade e outro nas ruas, que já foram da esquerda, mas não são mais. Para chegar lá, é preciso que os movimentos sociais, específicos, focados em pautas específicas, dialoguem e trabalhem junto com os partidos, que são generalistas. Essa convergência exige respeito mútuo, respeito às diferenças.
“Essas diferenças existem porque o mundo é epistemicamente muito diverso. Há muitas maneiras de pensar o mundo e isso precisa ser respeitado. Os mais humilhados pelo colonialismo têm muito a nos ensinar. Os mais escravizados, a população afro. Com eles, encontramos ideias que eles sempre tiveram, mas só agora escrevemos sobre elas, como se fossem novidade. Nós escrevemos, mas foram eles que as viveram. É por isso que a COP 29, a COP 30, a COP 31 foram uma grande fraude. Não podemos esperar delas nenhuma transição paradigmática”, finalizou.