A Eletrobras não aprovou nem divulgou até agora o Plano Diretor de Negócios e Gestão (PDNG) 20/24, desobedecendo a determinação do artigo 37 da Lei 8495/16. A denúncia é do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE), que acusa a direção da estatal de estar escondendo a saúde financeira da empresa, com plenas condições de realizar investimentos, ao contrário do que sustenta o discurso governamental pró-privatização. “Outra hipótese de trabalho é que a omissão vise não dar transparência à intenção deliberada da Holding de cortar projetos e programas de expansão no período de 20/24, que já teriam sido indicados pelas suas controladas, podendo resultar em diminuição intencional de market share em prejuízo das empresas do Grupo”, alerta Felipe Araújo, diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) e da Associação dos Empregados de Furnas (Asef).
“Entendemos que o descumprimento da Lei tem como objetivo dar sustentação ao falso discurso do presidente da empresa [Wilson Pinto Junior], do Ministro de Minas e Energia [Bento Albuquerque], do Ministério da Economia e do Secretário de Desestatização, Salim Mattar que, contra todas as evidências, insistem em afirmar que a Eletrobras não tem capacidade financeira para realizar investimentos”, afirma o boletim do CNE.
O PDNG 20/24 deveria ter sido publicado no final do ano passado. É um desdobramento do Plano Estratégico 2015-2030, utilizado para embasar a definição de prioridades e projetos do período. Todos os anos, um PDNG é aprovado, a partir de cenários e diagnósticos de mercado. Sem esse documento, que é uma obrigação legal, não é possível saber os planos do Grupo Eletrobras, em um setor absolutamente crucial para a economia brasileira. As premissas definidas no PDNG orientam a elaboração dos Planos de Negócios e Gestão (PNG) de todas as empresas do Grupo.
“É uma omissão muito grave. No mínimo, sem a divulgação do Plano Diretor de Negócios e Gestão, a direção está faltando com as obrigações corporativas de transparência, e quando isso acontece, deve se submeter aos questionamentos das partes interessadas, como as entidades representativas de trabalhadores, sociedade civil organizada e acionistas”, diz Felipe Araújo.
Segundo o diretor do Senge RJ, os números e projetos descritos no PDNG precisam ter uma consistência técnica, econômica, e poderão contrariar “a narrativa dominante do governo federal, segundo a qual as empresas do grupo não têm capacidade de investimento para manter market share significativo no mercado, o que, para este governo, seria a razão para privatizá-la.”
Felipe Araújo explica que há várias inverdades nessa argumentação. Primeiro, é falso que a empresa não tenha capacidade de investir. A Eletrobras encerrou o terceiro trimestre de 2019 com um lucro líquido de R$ 7,6 bilhões e uma taxa média de dívida líquida (ou seja, a relação entre endividamento e patrimônio) de 1.8 — bastante inferior à média de mercado, da ordem de 3.0 para empresas privadas, que já é um valor inferior ao aceito para empresas públicas devido às garantias da União. “A meta no PDNG do período 2019-23 era de uma taxa de dívida líquida de 3.1 para 2018 e inferior a 3.0 em 2019, o que significa que a empresa está muito decolada daquilo que se entende por nível saudável de endividamento do setor econômico em que se encontra, configurando, na prática, uma estratégia de investimento desfuncional”, afirma Felipe.
Além disso, a empresa tem em caixa de R$ 12,7 bilhões, recebeu R$ 3,7 bilhões em dezembro de 2019, referentes a aumento de capital, e oferta de US$ 7 bilhões para captação de US$ 12 bilhões em fevereiro de 2020. O boletim do CNE também destaca que a Eletrobras recebeu no último dia 5 de março a certificação de Green Bond, o que facilita ainda mais o acesso ao crédito do mercado para financiar projetos e ativos que tenham benefícios ambientais e/ou climáticos, como eficiência energética em edifícios, energia limpa, transporte com baixa emissão de carbono, manejo de resíduos, entre outros. “Enfim, a elevada oferta de crédito e também alto nível de caixa do Sistema Eletrobras, angariada ao longo dos últimos anos, notadamente da Holding, turbinada pelas duas recentes operações de mercado (aumento de capital pela capitalização de recursos da União com acompanhamento de minoritários e rolagem de bônus no exterior), credencia a Eletrobras a ser protagonista na retomada dos investimentos no Brasil, ainda mais neste momento de grave crise econômica”, diz o documento.
Mas por que o governo não quer investir? É clara a intenção de gerar caixa para um próximo controlador e diminuir a relevância no mercado, alegando que uma estatal perde função, se não mantiver o atual market share, explica Felipe. “Isso também é uma avaliação falsa, que chega a assustar”, critica. “Uma estatal deve ser mantida pelo Estado, sempre que houver interesse na atividade econômica que ela desenvolve, por exemplo, cumprindo um papel social ou estratégico. A energia elétrica é indissociável da soberania nacional, diretamente vinculada à possibilidade de expansão do PIB e a qualquer política econômica.”
Angra 3
Nesse sentido, também é grave que o BNDES tenha sido contratado pela Eletronuclear para criar uma modelagem para que a empresa consiga concluir a obra da usina de Angra 3. Credor da empresa e coordenador do processo de privatização, o banco poderia, segundo o CNE, privilegiar interesses que não o melhor projeto de construção.
A contratação do BNDES para modelar o projeto da usina “configura um conflito de interesses, pois o BNDES possui uma dívida de R$ 3,5 bilhões com a Eletronuclear e irá coordenar o processo da privatização da Eletrobras, caso haja autorização do Congresso Nacional”, aponta o boletim. “Em relação à modelagem, o BNDES propôs um modelo que facilita a implementação da privatização da Eletrobras, ou seja, um modelo que tira a Eletronuclear da Eletrobras (uma vez que não pode ser privatizada) de uma maneira mais fácil e ágil, sem se importar com o prazo de conclusão da obra de Angra 3, que deveria ser o objetivo principal. Este modelo indicado pelo BNDES é o mais complexo de todos para a conclusão da obra. Os modelos que priorizam a conclusão da usina tendem a dificultar a privatização da Eletrobras, tanto pela complexidade para realização da cisão da Eletronuclear com a Eletrobras, quanto pelo maior risco para realização de um projeto tão grande em uma empresa com uma base de ativos menor.”