Fonte: Fisenge
20 de janeiro de 1971. Feriado de São Sebastião na ensolarada capital do Rio de Janeiro. Uma tarde comum pelas ruas do Leblon. O sol batia no asfalto quente da rua Delfim Moreira, na orla carioca, se não fossem as sombras do golpe civil-militar, instaurado no país desde 1964. Foi nesse dia de feriado que homens armados invadiram a casa do engenheiro Rubens Paiva e o levaram para o quartel da 3ª Zona Aérea, onde foi barbaramente espancado. Segundo depoimentos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), Rubens foi levado gravemente ferido para o DOI-CODI, na rua Barão de Mesquita no Rio de Janeiro, onde foi submetido a tortura e morto. Até pouco tempo, o Exército sustentava versão de que Rubens Paiva havia tentado fugir e seu carro interceptado por terroristas, ocasião de sua suposta morte.
No entanto, em um depoimento à Comissão Estadual da Verdade, o coronel reformado Raymundo Ronaldo Campos admitiu que a ordem do major Francisco Demiurgo Santos Cardoso foi a seguinte: “Olha, você vai pegar o carro, levar em um ponto bem distante daqui, vai tocar fogo no carro para dizer que o carro foi interceptado por terroristas, e vem para cá”. Tudo isso era para “justificar o desaparecimento de um prisioneiro”. O coronel Campos diz que “saiu do quartel sem saber o nome do preso político”, mas sabia que “a pessoa que deveria estar no carro morreu no interrogatório”. Com esta informação, ficou clara a farsa sustentada pelos militares sobre a morte de Rubens Paiva, brutalmente assassinado pelo regime militar.
Recentemente, a Comissão Nacional da Verdade revelou o nome de um dos militares que teriam participado da tortura contra Rubens: o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho, já falecido. Em sua declaração, o coronel Ronaldo afirma que nunca viu Rubens Paiva: “Pararam o carro, abriram o tanque de gasolina e metralharam o carro, jogaram tiros para lá e para cá (…), mas o carro custou a pegar fogo, e foi preciso pegar um fósforo e jogarem dentro do tanque (…). Não foi informado de detalhes da morte do preso, e nada soube a respeito do destino do corpo”. Mais um depoimento joga luz às farsas dos militares, graças ao incansável e valoroso trabalho da Comissão Nacional da Verdade.
O filho do ex-deputado, o escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, comentou recentemente na imprensa a prisão do pai. “Cecília o ouviu gritar, soletrar seu nome inúmeras vezes. Foi torturado até a morte. Há 42 anos convivo com essa informação bloqueada por uma censura nos pensamentos. Quando, por algum deslize, aparece na imaginação a imagem do meu pai em um pau de arara, ela logo é reprimida. Não combina. Não dá para visualizar. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil. E vaidoso. O que mais lembram dele? Da gargalhada, que fazia tremer a casa. Fumava charutos. Gostava de comer do melhor. De viajar. Gostava de Paris. Chegou a morar lá, aos 20 anos, a uma quadra do Sena. Passou um ano na Europa, com os três irmãos, em 1947, para testemunhar a reconstrução de uma terra arrasada, o que mudou a sua visão de mundo” .
No dia seguinte à prisão de Rubens, a filha, Eliana, e sua mãe Eunice Paiva, foram levadas ao DOI-CODI. Eliana revelou sua prisão ano passado em depoimento à imprensa e à Comissão da Verdade.
Rubens, o engenheiro
A história de Rubens Paiva com a engenharia começa no vestibular. Ele passou na terceira vez para o Mackenzie, em São Paulo. “A entrada no vestibular de papai tem várias situações que explicam muito a forma de ele viver. Ele passou na terceira tentativa no vestibular e podia ter passado na primeira. A primeira prova ele perdeu. A segunda vez, ele esqueceu o compasso. A terceira, ele passou para engenharia civil”, contou Eliana Paiva.
Além de estagiar no escritório de engenharia do Consórcio São Paulo Confia S/A, no segundo ano, ele participou com os estudantes de arquitetura Pedro Paulo de Mello Saraiva, Marc Rubin e Alberto Botti de um concurso patrocinado pela Revista Brasileira de Hospitais, cujo projeto ficou em segundo lugar. “Eu era estudante de arquitetura e conheci o Rubens no movimento estudantil do Mackenzie”, lembrou o arquiteto Pedro Paulo de Mello, hoje com 80 anos, que ainda participou ao lado de Rubens da construção de uma casa de 1.000m², no recém-loteado bairro Cidade Jardim, em São Paulo. Era a quarta casa do bairro. Rubens também esteve à frente da organização da Semana de Energia Elétrica, promovida pela UEE, entre os dias 11 e 19 de setembro de 1952.
Também foi no Mackenzie que Rubens e Pedro Paulo conheceram Roberto Zuccolo, responsável pelos cálculos e professor de cálculo estrutural da universidade. Rubens se formou em engenharia civil em 1954. Muito amigos, os três tinham ousadia que marcou história. “Depois que ele se formou, meu pai fundou uma firma chamada Paiva Construtora. Meu avô que ajudou com dinheiro. A Paiva Construtora continuou existindo até papai ir para o exílio”, recordou Eliana Paiva. Foi nesse momento que a Paiva Construtora começou a contratar serviços de Zuccolo e Pedro Paulo de Mello.
“Juntos, os três trabalharam em diversos projetos, como, por exemplo, o edifício Solar do Conde, em Higienópolis, São Paulo, onde vive Pedro Paulo até hoje. O Solar do Conde foi um nome dado pelo publicitário Marcus Pereira em homenagem a um tio de Fernando Gasparian que tinha o apelido de “Conde”. Também construíram uma série de prédios em Santos (Porto Fino, Porto Belo, Porto Novo, entre outros). “A maioria dos nomes prédios traziam a palavra “Porto” e essa foi uma ideia do pai do Rubens, que foi à Itália, onde se apaixonou por Porto Fino”, recordou Pedro Paulo. Os três tinham ousadia que marcou história. “Construímos em Eldorado Paulista um ginásio estudantil, a primeira estrutura de concreto protendido, até então usado apenas para construção de pontes”, afirmou Pedro Paulo.
Rubens ia vistoriar pessoalmente todas as obras. “Eu me lembro da gente acompanhá-lo em algumas dessas idas. Ele ia ver se a argamassa estava bem feita. Se a ferragem estiver enferrujada as coisas não funcionam. Normalmente, era fim de semana, ele botava todo mundo dentro do carro e a gente ia ver. As casinhas da Pavuna foi ele quem criou. Eu vi papai fazer isso. Foi uma das últimas coisas que ele fez. Ele já poderia ter virado o mundo, mas ia continuar pegando carrinho dele para ver se estava tudo certo”, detalhou Eliana Paiva. Hoje, no Rio de Janeiro existe uma estação de metrô com o nome “Engenheiro Rubens Paiva”, em homenagem a sua luta e à construção do conjunto habitacional da Pavuna, no Rio de Janeiro. “Quando eu passei na estação do metrô eu tive uma crise choro. Ele deixou um legado, que é o conjunto habitacional na Pavuna. O legado de Rubens Paiva está ali. Era aquela coisa de ver o Brasil moderno”, contou Eliana.
Em 1956, Rubens – ao lado dos arquitetos Pedro Paulo de Mello Saraiva e Júlio José Franco Neves e o engenheiro Carlos Kerr Anders – participou do concurso nacional para a escolha do traçado do Plano Piloto de Brasília. O projeto não conseguiu alavancar entre os primeiros classificados.
A empresa de Rubens também atuou em diversos estados, como Roraima e Baia. Eliana Paiva lembra de um episódio que remete a uma declaração de Antônio Carlos Magalhães (ACM). “Em uma entrevista na internet ACM afirmou: ‘Vocês acham que eu sou de direita? Uma das pessoas mais interessantes que eu conheci na minha vida foi Rubens Paiva, quando ele veio fazer obras na Bahia’. Papai aprendeu a fazer pontes e participava de toda e qualquer licitação, inclusive em Salvador e ele ganhou duas ou três licitações em capital baiana por talento e competência”, ela comentou. Há cerca de dois anos, Eliana esteve com Valdir Pires, que foi governador na Bahia e atual vereador, que contou sobre a sua fuga com Darcy Ribeiro. “Foi uma epopeia. Valdir falou: ‘Teu pai antes de qualquer coisa era um sujeito que chegava e devolvia logisticamente como as coisas iriam se passar’. Quer dizer, ele conseguiu tirar o Valdir Pires e o Darcy Ribeiro de dentro do fogo. Agora, quando papai tentou fugir de Brasília, não conseguiu, ele foi pego e foi para embaixada. Acredito que a engenharia ensinou meu pai ser logístico”, afirmou.
Rubens se destacou como engenheiro pela ousadia e dedicação às obras por ele construídas. Tanto que sua filha Eliana recordou: “Até hoje, só tem uma ponte que caiu. Foi a primeira ponte que ele fez em Eldorado Paulista, onde meu avô tinha uma fazenda. Ele fez ainda estudante. No Vale do Ribeira, que inunda bastante, tem o Rio Ribeira de Iguape, que, um dia, veio com tudo. Passou uma, passou duas, passou três e na quinta vez levou a ponte”, concluiu.
Durante o exílio na Iugoslávia, Rubens deixou um engenheiro de sua empresa encarregado de administrar a construção do prédio em Santos e combinou de enviar depois instruções sobre contratos que fossem necessários. Mas as sombras da famigerada tarde de 20 de janeiro de 1971, não permitiram que Rubens continuasse o seu legado na Engenharia.