Falta de acesso à água evidencia desigualdades

Em palestra no Clube de Engenharia, o engenheiro Leo Heller falou sobre direito à água

Fonte: Clube de Engenharia

 

Foto: Fernando Alvim

 

O Clube de Engenharia lotou o auditório do 20º andar, na última quarta-feira (27), com a palestra “Direito à água”, do engenheiro Leo Heller, relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito humano à água e ao esgotamento sanitário e professor da Universidade Federal de Minas Gerais. O mandato de três anos, desde final de 2014, voluntariamente, foi designado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. O trabalho inclui, anualmente, a apresentação de dois relatórios às Nações Unidas: um para a Assembleia Geral e outro para o Conselho de Direitos Humanos. Entre as atribuições de Heller estão visitas ao redor do mundo para avaliar a situação do acesso à água e ao esgotamento sanitário e a avaliação de possíveis situações de violação de direitos.

No âmbito internacional, o direito humano à água só foi colocado expressamente em 2002 (54 anos após a Declaração de Direitos Humanos), no comentário geral do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) da ONU, dando elementos para a minuta de resolução da Assembleia da ONU. Essa minuta foi concluída em 2008, mas rejeitada, e somente em 2010 foi aprovada, não por consenso. Muitos países se abstiveram ou rejeitaram, seja por não quererem se comprometer – e depois acabarem por violar o direito – seja por não desejarem subordinar a legislação nacional à internacional, como Heller explicou. O resultado é que somente no ano passado a Assembleia Geral da ONU reconheceu o significado do direito humano à água e ao esgotamento sanitário, detalhando o conteúdo desse direito e as obrigações dos Estados. Poucos países incluíram em suas constituições. No Brasil, ainda tramita o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 07/10 para que o direito ao saneamento nos direitos sociais dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal seja incluído no texto constitucional.

 

Desigualdades sociais

É flagrante o quanto a falta de acesso a esse direito explicita as desigualdades sociais. Os direitos humanos seguem uma série de princípios, e o primeiro é de igualdade e não discriminação. Mas no nosso próprio país isso não se exerce: “Se nós examinarmos no Brasil, e em países parecidos com o Brasil, quem tem e quem não tem acesso ao serviço de esgoto, fica nítido um padrão de discriminação. Quem não tem esgoto e água no Brasil? Quem vive em favela, quem vive em zona rural, no nordeste e não no sudeste. A carga da ausência desse serviço recai principalmente sobre as mulheres, os povos indígenas e quilombolas, que têm um acesso muito baixo. E é importante reforçar que essas camadas da população também não têm acesso a outros serviços: educação adequada, acesso à saúde, moradia e segurança. O que se estabelece é uma perversa sinergia de falta de acesso a diversos serviços que penaliza de forma muito desproporcional essas camadas da população”.

 

Avanços tímidos e mal interpretados

Leo Heller utilizou os resultados das Metas do Milênio para mostrar o quanto se avançou nos últimos anos e o quanto ainda falta caminhar. Elas vigoraram de 2000 a 2015, e a meta para água e esgoto era reduzir pela metade a quantidade de pessoas que não tinham acesso ao serviço em casa, tendo como base o ano de 1990. Teoricamente, em termos numéricos, em 2010 a meta sobre água foi alcançada. Mas apenas teoricamente, porque ainda há 663 milhões de pessoas (são três “brasis”, afirmou) sem acesso a uma fonte melhorada de água. Além disso, esses números não avaliam qualidade da água, quantidade, continuidade do acesso, acessibilidade econômica e se escolas, locais de trabalho e serviços de saúde têm acesso. Também ignoraram os padrões de desigualdade: renda, localização, grupos vulneráveis, gênero, norte x sul global.

Já em relação ao esgoto, a meta não somente não foi atingida, como está no rol das que menos avançaram. Atualmente, há no mundo 2,4 bilhões de pessoas sem esgotamento sanitário melhorado, 70% nas áreas rurais. Cerca de 1 bilhão de pessoas defecam a céu aberto e 1,6 milhão morrem, todo ano, de doenças relacionadas à água e esgoto. A maioria de crianças de até cinco anos de idade. Apenas 95 países atenderam à meta a esse respeito.

 

Perspectivas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Após as metas do milênio, vigoram atualmente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que visam a, até 2030, erradicar a pobreza e a fome; combater desigualdades entre países; construir sociedades pacíficas, justas e inclusivas; proteger os direitos humanos e promover a igualdade de gêneros; e empoderar as mulheres e as crianças. O objetivo 6, especificamente, fala da disponibilidade e gestão sustentável de abastecimento de água e esgotamento sanitário para todos. E Heller mostra a importância dessa conquista: “Se conseguirmos avançar no objetivo 6, vamos avançar nos demais: eliminar a pobreza, a fome, saúde, educação, igualdade de gênero, crescimento econômico inclusivo e sustentável, reduzir a desigualdade e fazer a mudança do clima”.

O relator da ONU também destacou a necessidade de, nesse novo monitoramento, não repetir as omissões dos anteriores. Isso significa utilizar indicadores adequados, que possam dar informações sobre desigualdades, higiene, diferenças regionais, grupos sociais, acessibilidade financeira (ao direito), segurança e qualidade. E, em cada país, tratar das especificidades. No caso do Brasil, raça, por exemplo: “Quando a gente fala em desigualdade de renda, podemos estar ocultando outros tipos de desigualdade. É preciso falar em raça ou cor de pele. Os mais pobres são os negros”. Para o ano de 2016, Heller vai elaborar os relatórios sobre direito à água e ao esgotamento sanitário focando em dois pontos: cooperação internacional e gênero.

 

Privatização da água em debate

Após a exposição de Heller, o público presente participou do debate. Pedro Celestino, presidente do Clube, destacou  a importância do tema: “Esse é um problema da espécie humana, apresentado com muita propriedade”, afirmou. Celestino registrou, ainda, que o Clube de  Engenharia está em processo de criação de um fórum de saneamento, com a participação da sociedade. Moradores da Rocinha presentes aceitaram imediatamente o convite que foi dirigido especialmente a eles, após questionamentos feitos pela falta de recursos para o saneamento, prioridade inquestionável, e a opção pelo teleférico na comunidade.

Paulo Murat de Sousa, chefe da Divisão Técnica de Engenharia do Ambiente (DEA), abordou as possíveis vantagens ou desvantagens da privatização do serviço. Para Leo Heller, não há um consenso, mas as últimas experiências tornaram difícil a confiança na privatização: “O serviço de água e esgoto é considerado um monopólio natural. Diferente de telefonia, aviação. Água e esgoto nós temos só um prestador em cada localidade, e para regular um prestador só é muito difícil. Estudos que mostram a fragilidade disso. Muitas vezes, privatização pode ser um tiro no pé. Esse tipo de proposta me preocupa. E essas soluções sempre surgem em momentos de crise, como solução, mas podem mesmo exacerbar os problemas”

Como não existe receita, países buscam soluções que surpreendem, como o Chile. Hoje, a dona da água naquele país  é uma empresa. “O direito humano à água não prescreve água gratuita. Cobrar não significa transformar a água em valor econômico, gerador de lucro. É uma mercadoria como qualquer outra que a empresa utiliza para ampliar seu capital. Se, para que isso (o direito universal) aconteça há uma penalização dos que não podem pagar, isso é condenável. A política tem que ir no sentido contrário.”

Antonio Firmino, liderança comunitária do movimento Rocinha Sem Fronteiras, lembrou a falta de acesso à água e esgotamento na favela. Nem o Programa de Aceleração do Crescimento 1 (PAC 1) e nem o PAC 2 levaram esses serviços para a localidade. A pergunta encaminhada foi: o que fazer para que isso seja prioridade. Heller entende que é preciso ter bons projetos de implementação e, sobretudo, participação dos envolvidos que conhecem a localidade e sabem as necessidades reais, além de participação, transparência e acompanhamento e comparecimento dos técnicos.

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