Fonte: Brasil de Fato
A situação de calamidade na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) não é novidade. Nos últimos meses, a reitoria adiou a retomada do segundo semestre de 2016 por seis vezes porque a universidade não tem condições básicas de funcionamento sem repasse de verbas do governo estadual. Em meio à pior crise da história da UERJ, uma das principais soluções apresentadas é o financiamento privado da universidade.
Nos últimos meses, circulam textos de opinião e editoriais de grandes jornais defendendo a privatização da universidade, entre eles, o artigo escrito pelo ministro Luís Roberto Barroso, que também integra o corpo docente da UERJ, se destacou. O texto, em que Barroso defende que a universidade seja “pública nos seus propósitos, mas autossuficiente no seu financiamento”, gerou forte repercussão na comunidade acadêmica. Professores, funcionários e estudantes criticam enfaticamente a proposta.
Para Paulo Alentejano, vice presidente da Associação de Docentes da Universidade do Estado do Rio Janeiro (Asduerj), esse não deve ser um caminho a ser pensado para a universidade pública. “É o pensamento de quem não conhece a dinâmica da universidade pública no Brasil, de quem não vive o cotidiano da universidade. Quem financia pesquisa e extensão, mesmo nas universidades privadas, é o estado brasileiro e deve continuar sendo. Se a pesquisa passar a ser vinculada ao financiamento das empresas, estaremos servindo a interesses particulares do mercado. A UERJ é um espaço plural e deve continuar sendo pública e gratuita”, afirma.
Segundo o advogado e professor da UERJ, Ricardo Lodi, a argumentação a favor da privatização está pautada no modelo dos Estados Unidos, em que fundos de financiamento mantém as universidades. “Mas isso faz parte da cultura deles. Esse modelo surgiu em um tempo que os impostos eram altíssimos e quem doasse para as universidades ficaria isento de pagá-los. Por isso, os fundos se tornaram milionários e mantém as universidades até hoje. No entanto, esse modelo compromete a autonomia científica e a gratuidade do ensino. Temos que lembrar que nos EUA as famílias se endividam para pagar a universidade dos filhos”, acrescenta.
Portanto, o financiamento privado das universidades contribui para acirrar a desigualdade social. No caso da UERJ, em especial, uma ideia completamente oposta aos seus propósitos. A universidade foi a primeira a aderir ao sistema de cotas, garantindo o acesso de uma parte da população que nunca chegou ao ensino superior público, por isso, ganhou o título de universidade mais popular do país.
“A UERJ é da população, não pode se tornar privada. Não é vendendo patrimônio público, como estão fazendo com a CEDAE, que a crise no estado será remediada. A universidade tem que ser pública para garantir que os filhos da classe trabalhadora continuem tendo ensino de qualidade. Não podemos aceitar esse retrocesso”, afirma Maíra Marinho, militante do Levante Popular da Juventude e membro do Centro Acadêmico de História da UERJ.
Como lembra Lodi, outro argumento comum de quem é a favor da entrada do capital privado na universidade pública, é cobrar de quem pode pagar, o que ele considera equivocado. “A cobrança tem que ser distributiva na tributação e não no direito de usar o serviço público. Isso é uma forma de fugir da tributação progressiva, que já deveria estar sendo discutida no Brasil. Outro ponto é que se aceitarmos esse modelo ele pode ser estendido a todos a qualquer momento, afastando os mais pobres. Hoje o estudante da UERJ não pode pagar mensalidade, mesmo os que não são cotistas”, explica.
Sem previsão para retorno das aulas
A UERJ está de portas fechadas porque os repasses de verba do governo estadual estão atrasados, assim a reitoria não consegue pagar, principalmente, os serviços de infraestrutura terceirizados que mantém suas unidades funcionando. Atualmente, a universidade depende de empresas terceirizadas para realizar os serviços de limpeza, segurança, manutenção e alimentação.
Salvo a segurança, que está sendo mantida com fundos internos da universidade, os outros serviços tiveram contratos rescindidos com as empresas prestadoras após mais de três meses sem pagamento. Com isso, o último Fórum de Diretores das Unidades Acadêmicas, formado pelo reitor, sub-reitores e os diretores dos centros setoriais, realizado em fevereiro, decidiu que o início das aulas se dará após o estabelecimento das condições básicas para o funcionamento da universidade. Entre elas, o calendário de repasses de verbas para a manutenção em geral, um plano de regularização dos pagamentos às empresas terceirizadas e o calendário de pagamento de salários, incluindo o décimo terceiro e de bolsas estudantis e demais modalidades.
Hoje, os funcionários e professores da UERJ, que são vinculados à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação, estão entre as últimas categorias a receber no calendário de pagamentos do governo do estado. Assim como os aposentados e pensionistas, eles receberam na última quarta (22) apenas a primeira parcela do salário de janeiro. A previsão é de que o restante do pagamento só seja concluído no final de março. O décimo terceiro salário ainda não foi quitado e segue sem previsão de pagamento.
Os bolsistas também estão recebendo com atrasos. A universidade hoje tem aproximadamente 35 mil alunos, sendo 9 mil deles bolsistas. O atraso no repasse dos benefícios, de R$ 400, também é um impedimento para retorno das aulas. “Não tem como estudar sem bolsa, muitas pessoas dependem dela para pegar o ônibus até a universidade e se alimentar. Os estudantes bolsistas foram os primeiros a sentir a crise na UERJ, eles estão recebendo atrasado desde o ano passado”, afirma Maíra.
Trote solidário
Para ajudar os terceirizados e funcionários com salários atrasados, centros acadêmicos e Diretório Central dos Estudantes da UERJ organizaram o “Trote Solidário”. A campanha arrecadou cerca de 1 tonelada e meia de alimentos não perecíveis, entre feijão, arroz, macarrão, açúcar, sal e produtos de limpeza, que foram distribuídos na última semana. De acordo com os estudantes, a campanha alcançou mais que o dobro do esperado. Com início na segunda semana de janeiro, a meta inicial era receber 700 quilos de alimentos.
Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE)
Com servidores sem salário, alunos com bolsas atrasadas e falta de materiais básicos, o Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) também passa por uma séria crise. A unidade médica que tem capacidade de funcionar com aproximadamente 500 leitos, está com pouco mais de 100 leitos ativos.
De acordo com a estudante de medicina Bruna Trajano, há tempos o hospital funciona abaixo da sua capacidade, com cerca de 300 leitos, mas no ano passado houve redução drástica para 100 leitos. “O principal problema é falta de pagamento dos salários e das bolsas, porque os funcionários e estudantes não conseguem chegar até o hospital para trabalhar. Ainda enfrentamos problemas com a falta de remédios, reagentes para exames laboratoriais e outros materiais”, explica.
Para ela, mesmo com todas essas dificuldades, o hospital e a universidade tem que continuar funcionando sem financiamento privado. “As experiências privadas nos hospitais universitários comprovam que há um abandono da questão educacional e o espaço é apropriado pela lógica do mercado. Geralmente, é implantado um sistema de cumprimento de metas, que estabelece consultas de 15 minutos e abandona a formação dos estudantes. A quantidade passa importar mais que a qualidade do serviço. Por isso, não podemos deixar que isso aconteça ao HUPE e com a UERJ”, conclui.