João Pedro Stédile aponta os caminhos para a superação da crise sem precedentes na qual estamos mergulhados

Paciência, militância e trabalho de base: dirigente nacional do MST ressalta a importância de ganhar corações e mentes até que os ventos mudem e as massas retomem seu destino, hoje sequestrado por uma burguesia financista e antipovo

Esqueça as crises cíclicas do capitalismo apontadas por Marx e outros economistas que vieram depois dele. O que vivemos hoje vai muito além. Trata-se de uma crise estrutural de um sistema que não para mais de pé. O tempo do capitalismo como ferramenta para organizar as forças produtivas passou e, para garantir a continuidade da acumulação, insustentável para o planeta, o capital financeiro e as grandes corporações globais — núcleo dirigente do sistema — encontram caminhos na radicalização. Assaltam os bens naturais, fomentam os conflitos armados e cristalizam um aparato ideológico que domina corações e mentes com um ideário fascista.

A leitura é de João Pedro Stédile, coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em palestra no Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no último dia 15 de agosto. Para uma plateia que lotou o auditório do sindicato, Stédile apresentou o preocupante cenário do Brasil e do mundo desta primeira metade dos anos 2020. A leitura de conjuntura do dirigente social traz a avaliação das reuniões de cúpula dos BRICS, da qual participou ativamente. E o cenário não é bom.

A história aponta que não há crise sem superação e é nas contradições que surgem as rachaduras que abrirão os caminhos para o futuro. A erosão da democracia liberal é flagrante pelo planeta. Disputar ideias e fazer a luta política já não está mais na agenda da burguesia financista e comprar os eleitos é mais barato e certeiro. Enquanto a governança mundial se esfacela, o império norte-americano, hegemônico desde a Segunda Guerra Mundial, também desmorona. O “american way of life”, o sonho americano, se revela como farsa e o próprio dólar, ferramenta de exploração do trabalho do Sul Global, perde força aceleradamente.

“Ninguém respeita mais a ONU, a OMC e mecanismos similares e se multiplicam os líderes mundiais que apontam a necessidade de uma alternativa para o dólar. O cenário é de crise, mas enseja mudanças e a crise internacional tem influência direta na luta de classes do Brasil. O tarifaço de Trump é prova disso: puxou nossa principal liderança popular, o presidente Lula, mais para a esquerda. Isso é muito positivo”, destaca Stédile.

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Derrota na Luta de Classes

É desfavorável para os trabalhadores o atual momento da luta de classes no Brasil. Resultado direto do projeto ideológico neoliberal em curso nas últimas décadas, do desmonte de direitos empreendido por Temer e Bolsonaro e da disseminação da ideia de um empreendedorismo que, na prática, é precarização, o entendimento do trabalhador como parte da classe trabalhadora esmoreceu. A conjuntura mudou, mas as estratégias de luta e organização não acompanharam e as mobilizações já não alcançam o chamado “novo mundo do trabalho”.

“A classe trabalhadora brasileira é composta por 140 milhões de trabalhadores. Destes, 70 milhões têm carteira assinada, a maioria no setor privado. Os outros 70 milhões estão na informalidade, a burguesia desdenhou sua força de trabalho. E 59 milhões destes são pobres. O emprego cresce, mas não alcança a todos e o contingente com CLT é o mesmo de 2003. Nossa classe está derrotada politicamente e suas condições de vida pouco alteram a lógica do capitalismo. O governo, mesmo quando aplica políticas positivas, não altera a estrutura iníqua de desigualdade da nossa sociedade, o processo de acumulação de capital no país”, aponta Stédile.

Na crista da onda, surfa a burguesia. Dona dos poderes em uma democracia vendida, que financia ou subjuga, ela é totalmente subordinada ao rentismo e ao capital estrangeiro. Ainda que brasileira, destaca Stédile, tem a mente e o coração nos EUA e não se presta a assumir compromissos com o povo: segundo a Receita Federal, 40 mil milionários brasileiros têm cerca de 654 bilhões de dólares em paraísos fiscais. São recursos que se multiplicam sem passar pela indústria, pela produção, pela geração de empregos. Antinacional, antidemocrática e antipovo, ela decide os rumos do país livremente: colocou Lula na prisão e, depois, o soltou para derrubar a extrema-direita na qual havia apostado anos antes. Elegeu o presidente, mas se resguarda no Congresso, que legisla em seu nome.

Tempo de plantar árvores

A curto prazo, segundo o dirigente do MST, não há horizonte possível para virar o jogo. Mas o futuro não está posto, e o derretimento do sistema pode acabar por criar as condições necessárias para uma reação. Quando isso acontecer, a classe trabalhadora precisa estar consciente do seu papel e pronta para reagir. Fazer esta preparação é, segundo Stédile, a tarefa das esquerdas neste momento. O caminho já é conhecido: retornar ao trabalho de base, absolutamente abandonado hoje.

Stédile defende a organização, a formação de militantes, o fortalecimento de laços, a proximidade. No seu discurso, não há pressa. A analogia, claro, vem do campo: “É tempo de plantar árvores, não hortaliças. Os frutos virão, mas vai demorar”, defende. Para ele, a tarefa das esquerdas agora é tocar as pautas que emergem — atualmente, o fim da escala 6×1, a taxação dos super-ricos e, após os ataques de Trump, a soberania nacional —, enquanto preparam a classe trabalhadora para o momento em que emergirem as condições objetivas e subjetivas para o reascenso do movimento de massas. Quando milhões tomarem as ruas, é este trabalho, destaca, que definirá os rumos da classe trabalhadora e alterará a correlação de forças.

“A esquerda tem que retomar o trabalho de base. Derrotamos a ditadura assim. Se dependesse dos militares, o general Medeiros, comandante da Amazônia, teria assumido em 1984, mas nós os derrotamos. Quem estava lutando por 20 anos não sabia quando isso iria acontecer, mas seguiu lutando. Nosso trabalho era fazer o trabalho de base, clandestino, miúdo, conspirativo, de formiguinha, para que em algum momento, quando os ventos mudassem, a classe trabalhadora soubesse para que lado ela deveria ir. Foi o que aconteceu: construímos o reascenso do movimento de massa e derrotamos a ditadura”, disse Stédile.

Desafio político exposto, Stédile apontou, ainda, os desafios programático e organizativo, que completam a luta a ser travada nos próximos anos: é preciso dizer ao povo que é possível mudar a vida para melhor e buscar novos métodos e linguagens para isso. Vencer esses três desafios – o político, o programático e o organizativo – é, segundo ele, o caminho para que o reascenso das massas, quando vier, represente a superação da crise.

Uma esquerda com medo de dizer seu nome

Em que momento tiramos da nossa consciência e dos nossos programas a palavra “socialismo”? Em que momento desapareceu do nosso ideário a palavra “revolução”? A provocação é do professor Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência e Tecnologia e ex-presidente do PSB, que integrou a mesa do evento.

Crítico dos caminhos tomados pelas esquerdas desde a chegada ao poder, Amaral apontou a tragédia histórica representada pelo recuo na luta e pelo papel assumido como gestoras e defensoras de um sistema que, antes, buscavam substituir.

“Nos bons momentos somos, no máximo, reformistas. Nossos governos e partidos se casaram com o neoliberalismo e agora disputamos, no consciente da sociedade brasileira, a administração do espólio capitalista. Vamos para as eleições dizendo que somos os melhores nisso e, como consequência, o povo oprimido entende que somos defensores desta ordem. Mas nós, que sempre a combatemos, só podemos existir se seguirmos no combate”, defendeu Amaral.

O professor aponta o “analfabetismo político” como causa da tragédia: ao chegar à cúpula, abraçamos as burocracias e deixamos o chão de fábrica vazio, observa ele. E, na política, não há vácuo.

“A grande força do imperialismo não é militar, é ideológica. Mais forte que os fuzis é a conquista de corações e mentes. O espaço que deixamos foi ocupado pela direita. É uma total incapacidade de compreender o processo histórico brasileiro. Não temos programa porque não temos reflexão sobre a identidade brasileira”, alertou. A reconstrução, ainda que lenta, é a única saída agora.

A oportunidade em 2030

Quando diz que os frutos, se plantados agora, só virão com o tempo, Stédile não recorre à futurologia para determinar quando acontecerá, mas aponta uma janela de oportunidade, um momento que representará de fato uma chance para a mudança. No que diz respeito à política institucional, ele aponta as eleições de 2030 como um momento em que a luta de classes voltará à superfície.

Para 2026, Stédile indica que a vitória de Lula, com as bênçãos da burguesia e um vice indicado por ela, é o cenário mais provável. Com a candidatura de Tarcísio enterrada por Trump e o PSD fortalecido pelos resultados eleitorais de 2024 nos municípios — com Kassab cotado para indicar o nome para a vice-presidência e a agenda da burguesia — o jogo está posto. Mas não em 2030. Lá, a batalha acontecerá de fato.

“Temos os próximos cinco anos para preparar o nosso povo para esta próxima grande disputa. E são os jovens que estão no centro dela. É neles que precisamos chegar. Nos 9 milhões de filhos da classe trabalhadora que não têm o direito de estudar ou trabalhar. Uma população quase do tamanho da do Chile, correspondente a duas vezes à do Uruguai. É aí que toda a esquerda deveria colocar o seu trabalho, com novos métodos e linguagem. Porque todos os processos de mudança foram vanguardizados pela juventude e não será diferente agora. É preciso abrir mão dos discursos e fazer a educação das massas. E isso se faz com arte e cultura. As massas guardam na mente aquilo que chega aos seus corações. Elas não estão preocupadas com a retórica. É a música, o teatro, a poesia, a pintura, os símbolos que conquistam corações e mentes. São eles que trarão a revolução ao nosso país, não outra coisa”, defende.

A palestra de João Pedro Stédile, que contou com provocações do professor Roberto Amaral, está disponível na íntegra no canal do YouTube do SOS Brasil Soberano. Clique aqui para assistir.

No mês de setembro, o Senge RJ voltará a receber movimentos sociais, acadêmicos, militantes, parlamentares e estudantes para um novo encontro. A convidada será a professora Monica Bruckmann, do Departamento de Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação de História Comparada – PPGHC da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do Grupo de Trabalho Geopolítica, Integración Regional y Sistema Mundial do Conselho Latinoamericano e Caribenho de Ciências Sociais-CLACSO.

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