Foram erros, cometidos ou perpetuados ao longo do processo de reconstrução democrática do Brasil, que criaram a conjuntura necessária para que o governo Bolsonaro fosse capaz de utilizar instituições e aparelhos estatais para perseguir adversários – e aliados – políticos por quatro anos.
Traçando esse histórico, apontando caminhos que vão do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), da ditadura, até os atuais órgãos de inteligência policialescos e militarizados, que o ex-deputado e assessor especial do Ministério da Defesa no governo Dilma, José Genoíno, falou sobre o escândalo do uso pessoal e político da Agência Brasileira de Inteligência Nacional (ABIN) pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e seu governo, no último dia 08/02.
Convidado da primeira entrevista de 2024 do Soberania em Debate, programa do projeto SOS Brasil Soberano, do Senge RJ, Genoíno coloca não só a arapongagem na ABIN, mas o próprio governo Bolsonaro e a intentona fracassada de 8 de janeiro como resultados de um longo processo de corrosão democrática. Para o ex-guerrilheiro e deputado constituinte pelo PT, “fizemos uma transição democrática, de 1979 a 1985, que não mexeu nas Forças Armadas e no papel estratégico da inteligência”. Desde então, os governos democráticos vêm evitando o debate ou, como no caso de Temer e Bolsonaro, aprofundando o problema.
O passado não passa. Ele fica adormecido, na incubadora, e vem à tona no golpe contra Dilma e na campanha bolsonarista para a presidência.
O Brasil entrou no processo de redemocratização trazendo – lembra Genoíno – uma formação histórica, política e econômica de um capitalismo concentrador, monopolista, dependente, entreguista e com viés autoritário, racista, patriarcal e violento. É com essas bases sociais, culturais e econômicas que, com a integração do Brasil à hegemonia americana, se cria a concepção de guerra interna e o conceito de inimigo interno. Ali, a inteligência nacional passou a se voltar para dentro. “Ela não era usada para a defesa estratégica do Brasil, mas para investigar o povo, os opositores, os sindicatos, a esquerda, os movimentos populares. Não foi à toa que o criador do Serviço Nacional de Informações (SNI), Golbery do Couto e Silva, disse que havia criado um monstro após o episódio do Riocentro”, lembrou Genoíno, referindo-se ao atentado de 30 de abril de 1981, um tentativa do Exército Brasileiro de retardar a abertura política.
“A democratização do país não enfrentou essa questão. Consagrou a tutela militar em 1985 e as Forças Armadas nunca foram alvo de um debate estratégico sobre o que é uma Política de Defesa, sobre como o Brasil deveria se relacionar com o mundo, sob quais diretrizes”, aponta Genoíno, quadro histórico do PT que, afastado do governo e do legislativo e sem intenções de disputar novas eleições, define sua atuação política junto ao partido e à sociedade como alguém que segue fazendo política, “parlando, mesmo sem parlamento”.
Terreno fértil para o Bolsonarismo
O sistema de inteligência brasileiro atravessou os governos Sarney, Collor, dois governos Fernando Henrique e dois de Lula, sem o debate defendido por Genoíno. A inteligência de Estado seguiu abandonada, deixando a própria Soberania Nacional vulnerável.
No governo Dilma, um primeiro movimento aconteceu, com a extinção do Gabinete de Segurança Institucional e a criação da Casa Militar. O golpe de 2016 tratou de fazer retroceder essa única tentativa: Michel Temer recriou o GSI, agora sem subordinação à Secretaria-Geral da Presidência da República. “Em qualquer governo, inteligência e informação são questões estratégicas. Mas, aqui, caiu-se em uma anarquia, graças ao conceito de inimigo interno. Não se trata da defesa da Soberania Nacional, das ameaças externas, dos nossos recursos estratégicos, mas de uma concepção na qual o inimigo é um povo considerado de quinta categoria, com espírito vira-lata, um povo inculto”, aponta Genoíno.
Bolsonaro, criatura desse próprio sistema ineficiente, chega ao poder, encontra esse cenário caótico, uma ferramenta pronta para o mau uso, e a usa. A Comunidade de Informação, herança da ditadura, volta a funcionar como antes da redemocratização, mas com ferramentas poderosas desenvolvidas nas últimas décadas.
O controle do Congresso Nacional, lembra Genoíno, se mostrou ineficiente: “Nos países democráticos, os deputados que entram na comissão portam credencial de segurança máxima. Se alguma coisa vazar, é crime de Estado. Aqui, não. O Ramagem se elege deputado federal e vai para a CCAI (Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Senado Federal) para acobertar a bisbilhotice policialesca que ele fazia para proteger uma família e perseguir inimigos. Isso é uma barbaridade”.
“Com essa turma, o Brasil correu sérios riscos, para além da democracia, na Soberania Nacional.
Para além das 30 mil pessoas espionadas pelo FirstMile, software israelense adquirido pela Abin, os riscos corridos pelo país alcançam a própria Soberania Nacional. “Quem vai provar que esse programa, comprado pela Abin para espionar pessoas não coletou dados da Amazônia, dos nossos recursos naturais, fauna, flora, potencial estratégico? Se você não tem uma inteligência organizada, vai ficar à mercê da inteligência das grandes empresas, grandes conglomerados e das grandes plataformas que têm um poder paralelo. Com essa turma, o Brasil correu sérios riscos, para além da democracia, na Soberania Nacional”, aponta Genoíno.
No que diz respeito à aderência das Forças Armadas ao bolsonarismo, Genoíno destaca o terreno fértil que o aguardava. “Não foi por acaso que o bolsonarismo cresceu tanto nas Forças Armadas, entrando tão profundamente na sua estrutura. Havia uma cultura que ele soube alimentar e potencializar. Foi assim que ele, que era odiado, passou a ser adotado como ferramenta para o objetivo central, que era derrotar o PT e a esquerda”.
A captura das Forças Armadas e da inteligência nacional, contaminadas pelo aparelhamento do Estado para a imposição de ideologias fascistas bolsonaristas, marca um capítulo triste para a democracia brasileira e, segundo Genoíno, fala por si só. “Os militares brasileiros deveriam fazer um grande pedido de desculpas ao país. A que ponto nós chegamos. Fizemos a campanha do Bolsonaro, deixamos ele se lançar candidato na AMAN, fizemos a campanha do general Villas Boas, botamos dois “4 estrelas” pra espionar o presidente do Supremo. Olha o que produzimos, essa tragédia, esse descaso, essa coisa medíocre. A Soberania Nacional, os recursos naturais, os projetos estratégicos, a pesquisa do ciclo de energia nuclear, da base de Alcântara, da tecnologia para a guerra cibernética, tudo isso, deixamos de lado. É uma coisa rebaixada, de baixo nível”, observa.
Oportunidade que não pode ser perdida
Embora veja todos os desdobramentos das investigações sobre o uso ilegal da Abin – e da tentativa de golpe de Estado no qual ela se insere – como uma página triste e deprimente da história do país, Genoíno aponta que esta é, também, uma oportunidade de endereçar o tema.
O Brasil, segundo ele, está de volta a uma encruzilhada histórica: Ao longo dos séculos XX e XXI, sempre que questões exigiram soluções estruturais, rupturas conservadoras à direita foram articuladas e alimentadas pela Comunidade de Informação. “Foi assim com a crise que levou ao suicídio de Vargas, na luta pelas reformas de base do governo João Goulart e no golpe em 2016”, aponta. O escândalo da Abin pode ser, se houver vontade política para isso, a crise necessária para, finalmente, colocar a pauta em debate e evitar que tais rupturas voltem a ocorrer.
Os militares brasileiros deveriam fazer um grande pedido de desculpas ao país.
“Essas revelações nos chamam para uma atitude: Nós temos que fazer mudanças estruturais nessa época. Não podemos perder essa oportunidade. Na constituinte, fomos derrotados. Eu, Vivaldo Barbosa (PDT) e Haroldo Lima (PCdoB), queríamos mudar o artigo 142 e perdemos. Doutor Ulysses cunhou a famosa frase sobre a “Junta de três patetas”, quando o general Leônidas Pires Gonçalves, ameaçou a constituinte. Nem isso temos hoje. O governo Lula tem que tomar medidas mais estruturais em relação a modernizar as Forças Armadas, à tutela militar e às tentativas de aumentar a autonomia das FFAA. Esse corporativismo tutelar e autônomo precisa enfrentado. Porque, se não for, vai culminar na tragédia que foi o governo do inelegível, uma destruição de quatro anos. A esquerda não pode ter ilusão: mais cedo ou mais tarde isso vai contra ela também. Estamos em risco”, pontuou Genoíno.
Caminhos, coragem e política
Nos Estados Unidos da América, a inteligência é dividida entre a CIA, que atua em questões externas, o FBI para questões internas e NSA, a agência de inteligência. O modelo, que ficou famoso pela indústria cultural americana massificada, segundo Genoíno, é o mesmo seguido nos demais países democráticos. Os órgãos funcionam separadamente e a integração entre eles acontece por um comando que reúne o Ministério da Defesa e o Gabinete Presidencial. “Quando, diferente disso, unimos todos esses órgãos em um único polo, criamos a Comunidade de Informação, essa herança da ditadura que a redemocratização do país nunca enfrentou. O Gabinete de Segurança Institucional não faz sentido. Você pode ter uma Casa Militar, uma Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos comandando a ABIN politicamente e inteligência da Polícia Federal, para as operações judiciais. Não são serviços autônomos, mas a cooperação se dá por cima e não por baixo”, explica.
“A inteligência de Estado se vincula ao Gabinete da Presidência da República através de uma secretaria especial que prepara avaliações de cenários, informações de médio e longo prazo. Ela faz prospecção de estratégia. Não é para bisbilhotar, investigar, gravar, para fazer policialismo como aconteceu na época do SNI e agora, no governo Bolsonaro”, destaca o constituinte.
A questão da inteligência, no entanto, está direta e profundamente ligada ao debate sobre a tutela militar e precisa passar por um debate amplo. Para Genoíno, esse processo deveria ter começado no início do governo Lula. “O presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas. E, como tal, não deveria ter colocado no comando das três armas generais que questionaram as urnas e levantaram dúvida sobre a soberania popular, que politizaram as FFAA em oposição ao governo soberanamente eleito. O presidente Lula seguiu o critério de antiguidade com o general Arruda e teve que demiti-lo após os episódios de 8 de janeiro. O mesmo general que queria manter Mauro Cid na Brigada da Força Especial de Goiânia, responsável por proteger os Poderes em Brasília. Já o ministro da Defesa não poderia ser o representante das Forças Armadas no governo. É o contrário: ele tinha que ser o representante do governo nas Forças Armadas”, aponta.
Precisamos ter um projeto estratégico, com começo, meio e fim, que dê sentido à política, no sentido da emancipação, do otimismo, do futuro.
Para que resolva definitivamente o problema, eliminando o ideário da tutela militar sobre os poderes constituídos e suas instituições, o debate precisa, segundo Genoíno, integrar um projeto estratégico de médio e longo prazo para o Brasil. Ele passa pelos direitos da classe trabalhadora, pelo acesso a um sistema público de saúde e educação, pela recuperação da indústria nacional e pela reversão da privatização da Eletrobras. Precisamos, ainda, rever a concessão da base de Alcântara, estratégica na área aeroespacial e focar na integração sul americana, destaca.
“Deveríamos diminuir a hegemonia da financeirização do país e, no processo de luta, questionar a tirania fiscal do teto de gastos, que existe para favorecer a acumulação financeira do capital monopolista. Temos que ter um projeto antiliberal. Nosso dilema é esse: para derrotar a extrema-direita, temos que derrotar o neoliberalismo. Porque a extrema direita é cria do neoliberalismo no Brasil ou nos EUA, Itália, Espanha, Holanda, Hungria e Argentina. O liberalismo barbariza, precariza e o que sobra é o caos. Aí vem o medo, a violência, a arma, tudo que vivemos no governo do inominável. Temos que ter um projeto generoso do ponto de vista da emancipação” – defende Genoíno. “Precisamos de um projeto estratégico, com começo, meio e fim, que dê sentido à política, no sentido da emancipação, do otimismo, do futuro. A política sem futuro vira pragmatismo da pior espécie”, finaliza.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lígia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ